quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Balmung VI

Estranhamente, tudo era vermelho, a água do mar era vermelha, o sol brilhava vermelho, tudo possuía um tom avermelhado. Eu estava em meus dias antigos de gloria. Navegávamos no nosso barco de guerra, Presas de Fenrir. Ao longe, avistávamos terra, uma vila dos saxões. Via-se de longe uma grande torre, com uma cruz em seu topo. Isso era bom, eles enchem essas porcarias com ouro! Eldored estava comigo, firme e forte, vestido em aço, com Gori não era diferente, meu bigode não era branco como hoje, mas negro como o céu, minha força era o dobro da que possuo hoje em apenas um braço e a espada que aguardava em minha bainha retalhara muitos inimigos. Nós e a tripulação ovacionávamos com a promessa de saque e luta. O balançar das ondas aumentava nossa ansiedade e desejo e o corvo que voou a nossa frente era sinal de um bom presságio.
Aproximamo-nos da terra, os saxões preparavam-se para a resistência, isso era bom, pois nos prometia divertimento. Pus meu elmo, desci a viseira, o aço fechou-se ao meu redor, os demais fizeram o mesmo. Estávamos prontos para o ataque. Encalhamos o barco na praia e saltamos. O salto da guerra, como dizia o meu pai. Caiamos em terra e sei que fizemos o chão tremer. Éramos a guerra, a força, o vento do norte que vinha devastar a todos. Com espada em punho marchamos juntos ao longo da praia, em direção aos nossos inimigos. Alguns se aventuravam a nos enfrentar destemidamente apenas para darmos o abraço da morte a todos eles. Trucidamos todos eles. Um saxão veio em minha direção, o machado mal desferido, facilmente desarmado, pagou o preço de seu erro com minha espada em sua garganta. Joguei-o ao chão e continuamos nossa marcha mortal. Tudo estava naquele momento. Somos feitos para isso, tudo esta em jogo aqui. Nosso prazer está aqui.
Os inimigos saxões formaram a parede de escudo e juntos possuíam um número muito maior que o nosso. Era certo assim, pois nada que vem fácil é bom. A parede de escudo fechou-se em frente à grande igreja deles. Para lá corriam todas as crianças, mulheres, idosos e riquezas. Os saxões estavam confiantes, pois eram a maioria, ovacionaram insultos para nós. Formamos nossa parede de escudos, Gori e Eldored comigo. Batemos nossas espadas em nossos escudos e o trovão ecoou por toda a praia. Era a prova de que Thor estava em nosso favor.
Os covardes decidiram por jogar lanças e atirar flechas em nossa parede. Em vão. Avançamos mantendo nossa formação, dando passos precisos para que a parede não perdesse a forma. Nossa disciplina e firmeza assustaram os saxões, que desistiram de usar os truques baixos e apertaram-se em sua parede. Gritei para que mudássemos a formação para focinho de javali. Transformamos a formação de parede de escudo no formato de uma lança, para assim perfurarmos a parede inimiga e despedaçarmos eles. Não é algo fácil, obviamente, a parte dianteira, a que se faz a ‘’ponta da lança’’ leva o trabalho mais complicado, e claro, eu estava lá. O escudo no braço rígido, me escondi atrás dele, ao meu lado os outros faziam o mesmo, avançamos a frente enquanto os demais iam estreitando a parede, formando um tipo de triangulo. Forçamos a parede inimiga com nossa ‘’ponta’’, com toda a força de nossa parede ao nosso lado e logo eles não resistiram e romperam. É o inferno, pancadas de escudo, cortes de machado e beijos de navalha chovem por todos os lados. Não me feri uma única vez ali, várias vezes fui salvo pelo escudo amigo e pela cota de malha, já bastante avariada. Mas esses ferimentos sequer chegamos a sentir, apenas o desejo do combate prevalece em nós enquanto nosso sangue está quente.
Desfeita a parede de escudos após muito esforço, começamos uma chacina, despedaçando e desmantelando qualquer um que se mantivesse em nosso caminho. A formação deles fora desmontada de tal forma que agora abandonávamos nossa parede e avançávamos para o massacre. A minha espada ia e vinha com a facilidade que você corta a água com o remo de um barco. Muitos caíram aos meus pés até aparecer alguém que estava a minha altura. Alto e forte, quase o dobro de minha largura. Carregava um grande escudo a espada que possuía era diferente das demais.
Era esperto, mal veio em minha direção, lançou o escudo em mim, dando um grande empurrão, quase me lançando ao chão, com minha posição defensiva perdida, desfere um golpe onde o que me restou foi a esquiva, que adiantou por muito pouco, a lamina ainda beijou minha pele. Ele já estava pronto para me acertar com o escudo outra vez quando rolei para trás, ganhando espaço para pensar melhor. Ao meu redor a guerra se desenrolava e a terra bebia todo o sangue de seus filhos. Ele veio em minha direção, dessa vez eu fui também, com o que sobrara de meu escudo. Chocamos nossos escudos e nos encaramos por alguns segundos. Olhos furiosos me encaravam. Olhos da guerra. Eu sorri. Bati meu escudo no dele, forçando com meu ombro, isso o desestabilizou, aproveite. Rolando para o seu lado, acertei então um golpe preciso, em sua perna, bem atrás de seu joelho, onde temos a articulação. Apesar da malha de aço que protegia ali, o feri.
O desgraçado não se deixou abater e veio em minha direção, dessa vez, jogou o escudo em mim, e passou a usar a espada com as duas mãos. Em seu primeiro golpe, conseguiu partir meu escudo. Idiota. Com a espada presa nos pedaços de madeira e na borda de ferro do escudo, aproveitei para lhe acertar com o punho da espada o seu olho. Urrou de dor, acertei um ponta pé para afastá-lo de mim e assim que consegui isso, minha espada o mandou para outro mundo. Ela atingiu sua garganta, passando como se passasse uma faca em um queijo, deixando o grande corte como um sorriso em seu pescoço. O sangue jorrou como uma fonte. Seus olhos não eram mais de guerra.
Outro veio em minha direção, mas agora eu era o carrasco e ele só veio a mim para encontrar sua morte. Outros fizeram o mesmo e a todos dei o mesmo fim. Até que percebi uma coisa diferente. Um lobo estava ali, ele me circulava. Enquanto eu combatia, entre os golpes desferidos, entre os homens que caiam, eu vi. Mas não era só um, outro estava ali também. Não eram lobos normais, eram terríveis e formidáveis. Do tamanho de um boi, me circulavam, cheirando o sangue e me encarando. No meio da guerra eu vi um homem surgir. Não era nem alto, nem baixo, vinha em um passo lento, usava uma roupa negra e em sua mão não havia um cajado, mas uma lança. Era velho, uma barba branca como a alvorada descia de seu rosto. Em seus ombros havia dois corvos. Os lobos pararam cada um ao seu lado e quando me toquei, não havia combate, nem nenhum dos meus parceiros por perto, estava sozinho com ele.
- Lamdrak Landson, eu tenho um propósito para você. – Sua voz não era humana. Parecia que vinha do alto, não dele. Os lobos rosnavam e latiam ao seu lado, as presas brilhando como laminas de espada. Até então seu rosto estava encoberto por um chapéu velho, quando olhou em minha direção, revelou possuir apenas um olho. Era ele.
- Minha espada seguirá a direção de seu propósito.  
- Eu sei. Meu povo precisa de ajuda. Há um deus do outro lado do mar que quer subjugar os meus filhos, eu não permitirei isso. Preciso que encontre algo que irá mudar o que se passa. Seu povo precisa de um artefato que tenha meu poder. – Nesse instante ele bate sua lança no chão e faz tudo desaparecer. Estamos no vazio, apenas sentia os meus pés molhados em um lago sem fim. Então ele apontou a lança e eu olhei em sua direção. O que vi fez meu sangue de guerreiro gelar.
Um dragão levantou-se da água. Era enorme, maior do que qualquer coisa que eu já vi. Tinha cabeça de serpente e corpo de lagarto, Vi os dentes e senti como se eles cortassem minha pele, era difícil destituir qualquer coisa pois era negro como o céu, contrastando apenas os olhos, olhos cor de fogo que me encararam, a besta virou-se em minha direção, mostrando os dentes e sua imensidão negra cobriu os céus, mas ao ver Odin, parou e mudou de idéia, retomando o que ia fazer. Rugiu e fez tremer tudo.
Após o som do rugido se perder no tempo, ouvi uma respiração ofegante e o som de passos ao longe, chapinhando na água. Olhei e vi um guerreiro vindo em nossa direção, era jovem e forte, vestia uma roupa de couro surrada e pouco ali o protegeria em uma batalha. Passou por nos dois e seguiu em direção ao dragão.
- Ele é...?
- Sim, Sigurd e Fafnir. – Disse o velho caolho.
Sigurd brandia uma espada apenas, e foi ao dragão sem demonstrar medo algum. Este rugiu para ele, com o hálito fétido espalhando seu odor por todos os lados, cegando seus olhos com a podridão entrando por eles. Mas Sigurd não tinha medo e avançou para a besta. Esta tentou golpeá-lo com as garras, porém o jovem era rápido e destemido e, rolando para lá e para cá, chegou suficientemente próximo da besta para atingir-lhe um golpe.
Enfiou a espada na barriga da criatura, e por incrível que pareça, conseguiu perfurá-la! A couraça sólida como ferro que cobria a criatura rachou aonde o guerreiro investiu. Forçando a espada, rasgou a barriga da criatura até atingir o coração grande e negro. O monstro guinchou e rugiu até suspirar e cuspir para fora o ultimo ar de vida que havia. Do corte da criatura fez jorrar o seu sangue. O jovem, pequeno em frente a imensa criatura, se viu coberto por seu sangue. Ainda segurava a espada fincada no coração da besta enquanto berrava ao sentir o sangue percorrer todo o seu corpo. Retirou a espada do grande ferimento e ficou ali, no meio do sangue e vísceras da criatura que escorria e o cercava. Então Odin disse:
- Esta era a antiga espada Notung, vinda de minhas próprias mãos, mas despedaçada pelo castigo, agora então, refeita para a vitoria de Sigurd sobre o dragão Fafnir, a grande Balmung. Viu do que ela é capaz e é dela de que precisa. Encontre-a. Longe de suas terras, no lago onde os barcos fúnebres descansam a eternidade, Valsgarde.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Eles querem vingança V

O Velho Lamm e Torkild chegaram à propriedade de Eldored para encontrar o beijo da morte e do fogo por toda a fazenda. Crianças se escondiam e mulheres choravam, havia confusão e correria para todos os lados, homens tentavam apagar o fogo de algumas casas, outros prestavam socorros aos feridos, a maioria das pessoas estavam concentradas próximo ao grande salão de Eldored. Adiantaram os cavalos e ninguém se deu ao trabalho de interceptá-los. Quando o Velho Lamm estava pronto para descer de seu cavalo, Torkild chamou sua atenção.
- Olhe. – apontou para uma cruz de madeira fincada no centro da propriedade.
- Olaf... – Disse o Velho Lamm descendo de seu cavalo e dirigindo-se a pessoa mais próxima.
- O que houve aqui? – Era um dos guerreiros de Eldored, estava com o rosto suado e sujo, mas não ferido.
- Senhor Lamm, o velho – disse o homem ao reconhecer imediatamente quem lhe falava. – fomos atacados, senhor, homens da cruz vieram até nós. – apontou para a cruz.
- Estou vendo, rapaz, qual o seu nome?
- Astur, senhor.
- Conte-me o que houve aqui.
- Sim... Por onde posso começar? Uma comitiva chegou até nós exigindo falar com o senhor Eldored, ele os recebeu e não nos preocupamos, até que gritos de terror surgiram do grande salão...
- Quantos eram?
- Quinze, talvez mais.
- E não se preocuparam?
- Ah... – Astur encabulou-se... Torkild prosseguiu a conversa.
- O passado pertence ao Hel, continue sua historia.
- Sim, senhor... Então, os gritos vieram, eles bloquearam as portas e não pudemos fazer nada! Depois saíram, queimando tudo, quando encontramos nosso senhor, ele estava bastante ferido no chão... Eles, eles deceparam-lhe a...
- Nós sabemos, apenas continue. – Pediu Torkild.
-Bem, nós tentamos socorrê-lo, nisso os homens aproveitaram para fazer o caos lá fora, quando saímos tudo estava em chamas e essa maldita cruz esta... – Astur foi interrompido por Eldorin, filho de Eldored.
- Velho Lamm! Aos Deuses, você está aqui. – Eldorin estava ferido, mas mantinha-se integro, correu na direção deles – fomos atacados, meu pai está muito ferido, mas ainda está consciente... Ele foi torturado! – os cachos dourados caiam sujos de sangue e cinzas, a pouca barba loira parecia grisalha.
- Leve-nos até ele. Torkild, Esgmund, venham comigo, o resto de vocês fiquem aqui, prestem assistência e fiquem atentos!
Seguiram, passando entre o caos, as pessoas davam espaço quando viam de quem se tratava. O salão cheirava a cinzas e ao cheiro forte de ferro do sangue derramado. Sentado ali no centro de tudo, estava Eldored, um jovem curandeiro e duas mulheres tentavam cuidar de seus ferimentos, na extremidade do braço direito havia um cotoco enfaixado em panos onde estavam derramando água fervida. Uma das empregadas constantemente ia e vinha para restabelecer o volume de água quente que rapidamente se esvaia na limpeza do ferimento. Eldored viu a chegada deles e os olhou com um olhar cansado, sofrido, como se sua cara tivesse sido pisoteada por um cavalo de guerra.
- Lamm... Você aqui... – suspirou, sem forças para mandar os ajudantes saírem de perto. – O maldito Olaf veio deixar aquela mensagem... Você sabe, recebemos notícias de toda a Noruega, você sabe o que ele tem feito... Bem, parece que chegou a hora dele jogar a crença do seu Deus sobre nós... A qualquer custo. 
- Foi ele que fez isso? – Velho Lamm sabia que tinha sido ele, mas era inaceitável crer nisso, mesmo com os boatos percorrendo toda a terra fria, era intolerável que um desgraçado desses continuasse a fazer essa maldição quando o que precisavam era unir as forças com o inimigo em comum do outro lado do mar.
Torkild adiantou-se e disse:
- Isso não ficará assim, Eldored, dou a minha palavra, em sua honra e em memória a Eldar, Olaf e seu Deus doentio não conheceram mais a paz.
O Velho Lamm olhou para seu filho, com aquele olhar de ‘’não adiante as coisas’’, mas era a verdade, isso não podia ser deixado passar, Olaf precisará pagar pelo que fez.
- Ele disse que você será o próximo, Lamm. – Disse Eldored enquanto ele devaneava. – Ele tem medo de você, mas esta reunindo forças, Lamm, ele cairá sobre você. Ele quer acabar conosco, Lamm, ele sabe que nós somos os poucos que ainda seguem o valor dos nossos deuses nórdicos. Apesar dos templos cristãos que eles levantaram em nossa terra, ele sabe que nosso povo não aceitou essa crença em um Deus pregado, sabe que a qualquer momento perderá esses seguidores. Ele precisa apagar cada grande influente nórdica, para que não haja mais... – tosse, se engasga, até trazerem uma caneca de água para ajudar a respirar melhor, se ajeita um pouco na cadeira, fazendo caretas enquanto manipula o membro ferido, e então retoma. – para que não tenha mais chance da crença nórdica retomar seu lugar. Ele quer nos apagar, Lamm, vai vir a cada um de nós para obrigar-nos a aceitar o seu maldito deus, como tem feito com os outros, como fez comigo, mas eu não... Eu pertenço ao deus de um olho só.
A chuva começou a cair forte e logo o fogo foi controlado, muito da fazenda havia sido prejudicada, Eldored dormia enquanto Torkild e o Velho Lamm conversavam.
- Não podemos deixá-los aqui, precisam vir conosco, Larza já estará em segurança em nossas terras. – Disse Torkild.
- Sim, precisam... – Falou Lamm, pensativo. – Duvido muito que Eldored concorde com isso, não abandonara sua terra a nenhum custo.
- Ele está ferido, isso será justificável, será apenas durante sua recuperação. Ainda assim, não creio que seja seguro deixar seu filho Eldorin aqui, ele ainda não tem idade para controlar a fazenda.
- Então deixaremos alguém de nossa confiança aqui, talvez você, mas não posso deixá-lo aqui, preciso de você para o que se seguirá. Esgmund ficará aqui, ele é forte e tem sabedoria para comandar homens, também deixaremos uma força aqui, até as coisas retomarem sua caminhada. Fale com Eldorin, quero que ele venha conosco, precisa de treinamento e preparo, precisa ser um guerreiro, como o irmão e o pai.
Torkild encontrou Eldorin do lado de fora do grande salão, em um banco sob o teto de madeira. A confusão toda já tinha passado e a chuva havia chegado para amenizar o sofrimento, como que o frio norueguês houvesse chegado para ajudar seus filhos. Olhava para a chuva. Aproximou-se dele, ia sentar no banco, mas não havia espaço suficiente, sentou então ao lado dele, na terra mesmo. Sentiu uma leve pontada na perna, sentou, deixou esta esticada enquanto dobrou a outra. A chuva ficou molhando sua bota.
- Eu gosto da chuva – disse Eldorin, quando percebeu a intenção de Torkild, afinal, ele não sentaria a seu lado se não fosse para ter com ele uma conversa.
- Também gosto da chuva. Acalma minha alma.
Eldorin levantou-se, tinha uma machadinha na cintura. A cruz ainda estava lá, ele foi em sua direção. Tirou a machadinha e começou a acertar a cruz, uma, duas, três vezes bateu na madeira, tirando lascas, abrindo-a, rachando aos poucos. Cansou. Largou a machadinha na terra molhada e agarrou a cruz, empurrando com o pé a outra parte, para tentar arrancar o pedaço. Torkild observava tudo ali, não se importando se estava se encharcando na chuva, sacou sua espada e partiu o pedaço da madeira que faltava para derrubar a cruz. Eldorin foi ao chão, agarrado ao pedaço de madeira no qual lutava. Torkild o ajudou a se levantar. Eldorin disse:
- A chuva – ofegou um pouco - é como se ela nos entendesse não é? Como se elas nos consolasse... Fico pensando como teria sido se meu irmão estivesse aqui. Eu não pude fazer nada...
- Não pode, você não é capaz. – Disse Torkild. Eldorin olhou para ele com ressentimento. – Por isso vim aqui pedir para que venha conosco, precisa de treinamento, Eldorin, precisa tornar-se o guerreiro líder da terra de seu pai. Comigo você terá isso, sei que Eldar gostaria disso.
Eldorin permaneceu em silêncio, mas sabia que Torkild tinha razão, seus treinamentos cessaram com a partida do irmão e os muitos guerreiros de seu pai. As manhãs que acordava para o treinamento em seu lar, as pequenas missões realizadas foram deixadas de lado, e logo perdeu o ritmo que precisava ter para continuar a crescer como guerreiro, talvez se realmente fosse com Torkild...
- Eu irei.
Torkild sorriu, ele viu Eldar ali.
O Velho Lamm convenceu Eldored de seu plano, e no dia seguinte partiram cedo, mandara Esgmund trazer mais homens para escoltá-los e depois retornar a propriedade para protegê-la e administrá-la. Ao longo da viagem, na carroça preparada para levar Eldored, ele disse ao Velho Lamm:
-Você é um verdadeiro irmão nórdico, Lamm, um verdadeiro irmão nórdico.
-Você também é, velho amigo.
-Estou em dívida com você.
-Nada que eu já não estivesse se contar às vezes que você já salvou a mim em uma parede de escudos. – Riu Lamm.
-Você já fez o mesmo, desgraçado! São tempos difíceis, e você, como eu, compartilhamos da mesma dor, amigo. Nossos filhos e agora isso... O que os deuses querem de nós?
-Eles querem que nós ajamos, eles querem vingança.
O Sol estava no centro do céu quando finalmente chegaram a propriedade dos Land. As pessoas estavam um pouco apreensivas e ansiosas pelo retorno deles. Nesse tipo de ocasião não existe estrada segura a ser percorrida. Lamark estava entre eles, observando a chegada, procurando imediatamente o rosto do pai e irmão. Foi recebê-los. 
- O que se deu lá? – Perguntou ao Velho Lamm.
- Nada que Esgmund já não tenha lhe contado, Olaf atacou a fazenda, torturou Eldored, eles irão passar um tempo aqui, Esgmund e os outros irão administrar a fazenda durante esse tempo. Eldorin ficará conosco, precisa ser preparado, e sobre aquela viagem, quero que ele vá com vocês, agora, pegou o mensageiro?
- Peguei, guardei-o para você.
- Conseguiu seu nome?
-Vários falsos, um verdadeiro, Thir.
- Certo, e você pequeno guerreiro, como vai? – Disse o Velho Lamm ao rever o neto, bagunçou lhe o cabelo e cumprimentou Silned. – Minha querida, como esta Larza? Porque ela não está aqui?
- Esta trancada, apavorada, quando soube o que houve pelos homens de Esgmund, ficou apavorada no quarto, ela e o bebê não saem de lá. Pediu que deixasse dois homens guardando o quarto.
- É uma pena... Faça como ela quiser, diga para alguém avisá-la que Eldored está aqui.
Eldorin desceu de seu cavalo e cumprimentou seus anfitriões.
- Seja bem vindo, Eldorin. – Disse Lamark, o recebendo.
- Sou muito grato, Lamark Landson, por tudo.
Lamark o guiou até o seu cômodo, era em uma cabana de madeira, o teto de palha, mas tudo bem resistente e com ótima aparência.
-Aqui, este será seu lugar, pode tomar como seu, ponha seus pertences aqui e descanse.
Eldorin agradeceu. Lamark Saiu da cabana, indo encontrar-se com Torkild que o esperava, enquanto desatava sua pequena bagagem do cavalo.
- Olaf atacou e torturou Eldored. Conseguiu pegar o mensageiro?
- Nosso velho me contou. Sim, guardei para vocês darem uma olhada.
- Precisamos decidir o que fazer, isso não poderá ficar assim, Lamark.
- E não vai, o velho ainda ira te contar sobre o seu sonho.
Torkild havia se esquecido do sonho do pai e do que ele desejava tanto contar no dia anterior. Os últimos acontecimentos lhe reviravam os miolos. Eldored e os demais já estavam hospedados, foi preparado o banquete, onde a maioria estava faminta e fraca, era necessário repor as forças. Eldored foi à mesa, negando-se a ficar no quarto. Comeu pouco, mas comeu. Ficou ao lado do Velho Lamm e durante a refeição, conversaram bastante, na medida do possível. Lamark e Torkild não conversaram muito, Eldorin permaneceu em silêncio. Silned não estava ali, optara por comer com Larza em seu quarto, esta estava muito fragilizada. Quando todos comeram o que tinham de comer, o Velho Lamm levantou-se e disse:
- Lamark, leve-nos ao miserável.
Lamark levou o velho Lamm e os outros, incluindo Eldored, que fez questão de ir ao mensageiro cativo. Estava em uma cabana velha do outro lado da propriedade, havia deixado um homem vigiando-a, acenou com a cabeça e deu espaço para que eles passassem. No escuro sujo e úmido, amarrado como um porco, estava Thir. Ele não gostou muito de perceber que havia visita. Acenderam a lareira e colocaram-no sentado, para que assim pudessem conversar. Lamm pediu que tirassem a mordaça. Thir respirou fundo e começou a falar com rapidez, topando nas palavras.
- Senhor, ó, grande Lamm e... – Ficou pálido quando viu Eldored, supostamente concluindo que não havia como tentar mentir e convencê-los de que não esteve na propriedade dele. Engoliu em seco. – Eldored, olha, todos vocês, eu, eu só obedeci ordens, eu precisei... – Começou a chorar. O velho Lamm olhou para os outros, riu dizendo:
- Ah, e eu nem comecei a falar! – Riu e socou o rosto de Thir, deixando uma bolota inchada embaixo do olho esquerdo. – Calado, desgraçado – socou outra vez. E mais uma vez. Thir deixou um dente cair de sua boca. – Pronto, agora podemos conversar, tudo bem?
Thir concordou, e o velho continuou.
- Trabalha para Olaf?
- Sim.
- Então foi ele o responsável por toda essa atrocidade? Qual a razão disso?
- Eu não sei... Eu – O velho Lamm socou-o, Thir respirou fundo, e Lamm acertou outro soco.
- Eu não terei paciência com você, agora, responda a razão disso.
Thir ainda quis pensar em se fazer de difícil, mas a quem ele queria enganar?
- Rei Olaf quer salvar esse povo, ele quer trazer a palavra de Jesus. E ele fará tudo o que for possível para que isso aconteça. Nós somos um povo condenado! – Quis se exaltar – e só a palavra dele poderá nos salvar desses costumes antigos!
Lamm acertou um ponta-pé, lançando Thir, com cadeira e mordaça, ao chão.
- Ele disse rei? – Perguntou Eldored.
- Você disse rei? – Perguntou Lamm, pisando em seu rosto contra o chão.
- N N N N não...!
- Ele disse rei – confirmou Lamark.
- Alguém aqui está mentindo – pisou mais forte. – Esse desgraçado acha que é um rei?
- Ele é. – Thir fechou os olhos, pronto para o golpe que com toda certeza, lhe deixaria inconsciente, mas nada veio, o Velho Lamm suspirou.
- O desgraçado, teve o debate onde todos nós discutimos isso, lembram-se, não é? Esse miserável quis nos impor essa religião, alterando até mesmo nossas leis, mas a maioria concordou que cada um iria ter o direito de seguir o costume que decidisse. E ele estava lá, ele concordou e nos deixou em paz! Porque não deixa isso de lado? Aceitamos as malditas igrejas, porque agora querem nossos espíritos também? A alma de um guerreiro pertence a Odin, Thir, e eu quero que você diga isso a Olaf, ouviu?
Thir arregalou os olhos, iria sobreviver? Não podia acreditar, apressou em concordar, balançando a cabeça em confirmação. Os outros olharam com certa indignação para o Velho Lamm.
- Pai, Eldored... – Quis dizer Torkild.
- Sim, eu sei, eu sei, tragam-me um machado. Thir, você partirá em alguns dias, após seu ferimento ter sido curado.
Lamark sorriu, achou que os olhos de Thir iriam pular fora de sua cabeça. Eldorin falou:
- Senhor, deixe que eu tome parte disso, pela nossa família. – O velho Lamm concordou, passou o machado que havia acabado de lhe trazer, para ele. Ainda era jovem, mas logo se tornaria homem. Tomou o machado e olhou para o pai, que acenou com a cabeça. Não foi essa a intenção dele, queria que lhe dissessem aonde deveria cortar, mas já estava parecendo tão confiante, seria a mão, como fizeram ao pai.
Torkild soltou uma das mãos e a pôs em cima da cadeira em que Thir estava. Olhou para Eldorin e confirmou. – Agora.
Eldorin respirou fundo, segurou o braço do machado com as duas mãos, firme, nunca havia feito isso, pensava ‘’ aja, depois pense, aja, apenas isso’’, e foi. Desceu o machado um pouco acima da mão, acertando em cheio, porém, a força não foi suficiente para partir completamente o membro. Thir guinchou de dor. Eldorin suou frio, quis se atrapalhar, mas algo nele não deixou que isso acontecesse. Foi em frente e desferiu o segundo golpe, errando o primeiro corte, abriu outra grande fissura no ante-braço de Thir, esse gritava como um animal parindo. Eldorin sequer pensou e desferiu o terceiro golpe, dessa vez, partindo o que ainda havia de se partir, nem soube se foi através do primeiro corte ou do segundo, apenas partiu. O machado fincou na cadeira de madeira. Thir virou-se agarrando o cotoco do braço.
             O Velho Lamm mandou que levassem Thir e fizesse os cuidados necessários para que sobrevivesse. Lá fora já era noite. A brisa fria os convidava a saírem da cabana suja e velha. O Velho Lamm estava pesaroso, disse:
            - Venham, todos vocês, há algo que quero contar. Sobre o certo sonho. Acho que agora é o momento. Venham comigo, Lamark, ajude Eldored.
            Caminharam juntos ao longo da propriedade, por todos os lados, tochas já estavam sendo acessas para iluminarem o lugar. Passaram pelo grande salão, indo em direção a árvore Skald. Já haviam acedido algumas tochas por lá e o Velho Lamm ordenou que fosse feita uma fogueira ali. Foi o tempo que levou para Eldored chegar lá com calma, sem esforço. Sentaram todos ao redor da fogueira recém acessa. Beberam um pouco de hidromel e conversaram até os ânimos se acalmarem. Foram dias cheios. Eldorin estava nervoso.
            O Velho Lamm tomou a palavra.

            -Bem, amigos, há algo que preciso compartilhar com vocês, algo que pode definir muitas coisas daqui pra frente. Odin falou comigo e foi da seguinte forma... 

sábado, 14 de dezembro de 2013

A mensagem da cruz IV

O rugido do gigante fez tremer os céus, a nevasca e o frio com ela pareceram aumentar com o chamado do grande monstro, tudo escurecia, o Sol era uma lembrança distante naquela escuridão e tormento, mas era preciso derrotá-lo e só ele poderia fazer isso. Cerrou os olhos e sacou a espada, era preciso um golpe apenas e conseguiria derrota o temível. Preparou-se, correu, pulou, rolou, correu outra vez, era incansável! O gigante também sacara sua espada, martelando a terra por onde ela passava, mas isso não fazia o jovem temê-lo, precisou o golpe e acertou seu calcanhar, e a força foi tão grande que este foi ao chão.
- GRRRRRHHHHHHHH – Gemeu tenebrosamente, fazendo a terra tremer mais que um mar tempestuoso. – Maldito pequenino, irei desossá-lo!  - Sua mão o agarrou como se fosse um boneco de palha e o jogou no ar, pegando-o novamente, jogando-o outra vez, cada vez mais alto.  Uma voz veio de algum lugar:
- Cuidado para não o deixar bater no Sol! – O gigante ria, e o jovem também.
- Vou jogá-lo tão alto, nanico, que irá trazer um pedaço do Sol para mim!
E então Torkild Landson jogou-o mais uma vez e agarrou Lamarkson nos braços que ria descontroladamente, daquelas risadas que a criança atrapalhasse até mesmo para respirar.  Lamark estava ali, nas sombras de um carvalho, observando toda aquela guerra.
- É nanico, parece que você tem um Sol ai contigo, ahn? – Largou o pequeno no chão, enquanto este implorava por uma nova guerra.
- Vamos lá, tio, mais uma batalha daquelas! Agora você vai ser o monstro do mar!
- Por hoje já foi derramado sangue demais, grande guerreiro, deixemos para outro dia – disse, fazendo um cafuné na cabeça do garoto.
- Vamos! – insistiu Lamarkson – meu pai irá me ajudar! – apontou para as sombras onde estava - Ele é bem forte também! Acredita que mais que eu?
- Você jura?
- Rá! Precisa ver só!
-Pode apostar que verei pequeno, agora venha, sua mãe vai implicar se não voltarmos, e vai implicar com seu pai também.
Quis teimar, mas aceitou deixar a batalha para outro dia. Foram até onde Lamark os esperava, a criança correu a frente, brincando com tudo que era possível brincar enquanto os dois se deterão em uma caminhada mais lenta.
- Ele gosta de você. – Disse Lamark.
- Também gosto dele, vai ser melhor que você quando crescer.
- Vai ser melhor que você também.
Era um dia claro, o Sol deitava seus olhos confortavelmente na pele deles, mesmo a brisa fria fazendo o seu trabalho tão bem, era um momento agradável.
- Impressionante como depois de tantos anos isso aqui não mudou muito, não é? – Disse Torkild, observando a fazenda em que cresceram juntos enquanto caminhavam. Lamark sorriu. Torkild apontou para Lamarkson. - O pequeno lembra você, era tão impossível quanto, só que a beleza ele puxou a mãe, você é feio como um bode.
-Coisa que ambos puxamos ao nosso pai, você principalmente. Ele tem as bochechas dela.
- De quem?
- Da Silned, oras, são boas de apertar.
            Caminharam por várias casas da propriedade, passando por muitas cabras, cachorros, e até mesmo algumas vacas, perto do grande edifício, passaram pela forja do Velho Skild, onde várias barras de aço estavam empilhadas em um canto enquanto um grande forno era instigado por carvão, depois, vinha à área de treinamento do senhor das armas do Velho Lamm, Esgmund, onde estava a gritar e ordenar.
- Formação, seus vagabundos! Ora, quero uma coisa decente! Mas que maldição! – se referia a uma parede de escudos mal formada. – Vocês querem ir à guerra com isso? É isso mesmo? – Foi até a parede mal formada e deu um empurrão com o pé, o rapaz que segurava o escudo, junto com os demais próximos a ele, foi ao chão, se esbarrando todo entre eles em meio à lama. - Precisam estar prontos para o ponta-pé da guerra, suas galinhas, mas que porcaria!  
            Lamarkson não estava mais correndo e brincando, estava absorto no momento, sem conseguir tirar os olhos da confusão do treinamento. Esgmund veio até eles, com braços grossos, e a barriga ainda mais, rosto inchado e barba grisalha com aquele olhar de javali selvagem.
            -Ah, grandes, espero que não se deixem desanimar pelo que viram – referia-se ao treinamento fracassado – a prática tem sido assídua e esses são novos recrutas, em breve estarão prontos para uma parede ao lado dos senhores, ah! Torkild! Achei que não iria revê-lo! –Disse, apertando as mãos com ele. – Ainda lutaremos juntos outra vez.
- Eu sei que sim, como está a situação de homens? – Sabia que a maioria havia partido com ele para nunca mais pisarem nessa terra outra vez, era preciso saber quantos ainda restavam.
- Temos um bom contingente, cinco barcos em excursão e dez aqui, com você retornaram mais 15, isso somente aqui do velho Lamm, ainda velho continua tendo essa grande influencia no poder militar e vocês estão ai, para dar continuidade ao legado dele – riu - e ele o de vocês – apontou para Lamarkson. Brincava com um pedaço de madeira, tentando imitar o movimento de algum dos homens, Esgmund aproximou-se dele e deu uma espada de madeira. – Tome, consegue segurar?
Não respondeu, pegou a espada e a empunhou, bem de mau jeito, tinha quase o seu tamanho e pesava mais que qualquer coisa que já tenha brincado, a não ser a lança de caça, mas aquilo não foi uma brincadeira.
- Esse garoto vai pegar o jeito, sabia? Traga-me ele pelas manhãs, ele já pode começar a ter umas aulas.
- Eu o trarei – disse Lamark.
Retomaram a caminhada, passando pelo grande salão, Silned e Larza estavam lá, esta com a pequena criança em seu colo, já estava um pouco maior que a ultima vez, tentando ir ao chão para brincar, ficou feliz ao ver Lamarkson.
- O pequeno Eldred fica animado em ver outro pequenino – disse, procurando um sorriso a muito distante de seu rosto. Lamarson não gostou muito do comentário, havia acabado de segurar uma espada! Pequenino não! Larza tentou por a criança em pé, que andou de mau jeito até tombar de leve apoiando-se no chão com as duas mãos estendidas, com olhar intrigado e sério, forçou-se a se levantar e ficar em pé apenas com seus próprios pés, desequilibrou, apoiou-se na mãe e caiu com a bunda no chão.
            - Este aqui esta deixando de ser um pequenino que com certeza vai ajudar Eldred a deixar de ser um também, não é mesmo? – Lamark olhou para seu filho e viu seu olhar indignado, deu uma tapa leve em sua nuca. – Não faça essa cara de bode ou eu trarei capim pro seu jantar. Quer sua criatura de volta? – perguntou a Silned, que sorriu para seu filho e o tomou em um abraço de saudade. Lamark riu. – Parece que não o vê há semanas.
            - Foi quase uma semana para mim – Disse Silned.
            - Foi esta manhã, ah! Que grude entre esses dois.
            - Fale como se você não fosse assim, grudava em nossa mãe mais que o cheiro ruim do cavalo do nosso velho pai. – comentou Torkild – vamos, há coisas que quero falar com você antes de conversarmos com ele.
            - Vamos – Lamark inclinou-se para beijar a testa de seu filho e a boca de sua mulher.
            Saíram do salão, caminharam pelo planalto que havia do outro lado do edifício, passaram por vários cercados, em uns havia porcos, outros cabras, cachorros iam e vinham, dando cheiradas neles. Em seguida havia ali uma descida com alguns degraus de madeira, caminharam por ali, chegando a um espaço amplo, havia quatro árvores ali, uma delas, a árvore Skald, onde o velho Lamm apreciava passar seus dias. Perto dela havia uma tenda, meio de pano, meio de pedaços de madeira, com uma mesa, algumas bancadas, onde Lamm costumava deixar suas coisas, ali se via sua antiga cota de malha, e algumas das várias espadas que usou em seus tempos de destruição. Sentaram ali e resolveram aguardar o retorno do pai.
- O velho quer te falar sobre um sonho, um sinal. – Lamark adiantou o assunto.
            - E o que diz o sonho?
            - Algo sobre o nosso destino.
            Aguardaram ali durante um tempo, suficiente para apreciar o lugar, Lamark era acostumado com aquele lugar, mas Torkild já havia um tempo se desabituara a ele. Gostava de lá, das crianças correndo, dos cachorros latindo, das cabras, das caçadas, achou que nunca mais pisaria ali. Lamark observava os devaneios de seu irmão, imaginando o que se daria após a conversa com o seu pai, havia muitos planos a serem elaborados pela frente, a busca proposta pelo Velho Lamm ainda é um segredo, é necessário que seja. Ele e seu irmão serão os grandes responsáveis pela realização desse plano, juntos, são o braço o forte do Velho Lamm, e este, é o punho de ferro dos nórdicos. É chegada a hora do clã Land assumir a conquista final sobre as terras além-mar.
            O velho Lamm chegou, carregava um arco às costas e puxava um javali morto por uma corda, havia duas flechas espetadas nele, uma na cabeça e outra na barriga. Sentou-se cansado próximo dos filhos.
            - Logo mais nem para caçar um maldito javali servirei mais, maldição do tempo sobre o corpo – largou o arco de um lado e o javali do outro. Chamou um dos empregados e pediu que levasse o javali para a cozinha de Gori.  – Como esta a cicatrização dos seus ferimentos, Torki?
            - Quase não as sinto mais, apenas a da mente permanece incurável. – Respondeu Torkild, o velho Lamm gostou disso.
            - Sim, sim, e eu tenho a cura para isso, algo que é necessário para todos nós, não falo só de mim e vocês, falo de nossa terra, nosso povo. É necessária a cura para os nossos corações tormentosos, para as nossas perdas, é necessário derramar sangue para fazer nosso peito aquecer novamente.
            Ai estava uma mensagem que aqueceria o povo nórdico mais que o fogo durante um duro inverno. A guerra, o prazer em lutar, em por em jogo a vida, cada luta, cada combate feito, é o momento derradeiro da vida de qualquer um, seja na vitória sobre a morte, em sorrir para mais um dia de conquista, ou se é o fim, onde se perde a aposta e se segura com firmeza o cabo de sua arma para apreciar a visão da chegada das valquírias em seu ultimo instante de vida. Isso era nórdico, disso que era feito o espírito de um nórdico. E é disso que querem que a Noruega esqueça.
            - Eu o vi, e ele me disse o que devemos fazer. – Disse o Velho.
            - Quem você viu? – Perguntou Torkild.
            - Odin.
            Nesse momento, são interrompidos por um dos moradores, ele traz algo embrulhado em um pedaço de pano, tinha um cheiro forte e ele fazia certa careta quando chegou aflito para eles.
            - Meu senhor, desculpe a interrupção, mas pediram para lhe entregar isso com urgência. 
O velho Lamm tomou o pacote e o desembrulhou.
- Pelo frio do Hel, o que diabos é isso? – Largou na mesa a coisa que revelou ser  uma mão decepada. O odor subiu e deixou no ar aquele cheiro de ferro e carne. O Velho Lamm olhou-o indignado para o sujeito, agarrou-o pela gola e o trouxe para perto de seu rosto, o olhar irado.
- Que maldita brincadeira é essa, seu desgraçado? Mas que porcaria você me trouxe?
- Eu, eu, eu não sei, senhor, pediram para entregar-lhe isso!
- Quem?
- Não sei, ele estava com um capuz, e tinha pressa, acabou de sair!
- Mas que maldita maldição maldosa! Lamark tente pegar esse miserável, e você, vá com ele, agora!
Lamark levantou-se como um raio e arrastou o sujeito com ele. Torkild falou.
- Pai, há um anel nesta mão. – Realmente havia um, o sangue derramado e coagulado havia coberto e escurecido grande parte da mão. Torkild pegou um pedaço do pano e limpou para que pudessem identificar alguma coisa. E conseguiram.
- Esse anel pertence a Eldored...
-E provavelmente a maldita de sua mão, mas que desgraçado, precisamos ir a sua fazenda, venha, reúna alguns homens e pegue alguns cavalos, vamos partir imediatamente!
Levantou-se, pegou seu arco e algumas flechas em sua aljava de couro de bode e saiu correndo gritando ordens e mais ordens. Torkild disparou, subindo os degraus de madeira e entrando no grande salão, puxou um dos empregados e disse:
- Traga-me Esgmund e mais dez de seus homens, prepare tantos cavalos para isso, rápido, seja mais rápido que o trovão de Thor! – O homem o fez. Próximo dali estava Silned, Larza e as crianças. Chamou Silned que se levantou e foi em sua direção.
- O que houve? – percebeu a tensão e urgência nos modos de Torkild.
- A fazenda de Eldored foi atacada, procure deixar Larza ocupada, leve-a para algum cômodo e fique lá com ela e as crianças.
- Como você sabe disso? Onde está Lamark?
***
            Lamark cavalgava como um trovão cavalga as nuvens, seguia a trilha pela qual Levin, o sujeito que entregou o pacote, viu o homem encapuzado partir. Levin vinha logo atrás.
            - Ele não deve ter ido muito longe, senhor, pedi que trouxessem algo para ele comer ou beber para retardá-lo um pouco, achei os modos suspeitos demais para deixá-lo partir imediatamente.
            - Fez bem, o que ele disse quando lhe entregou o pacote?
            - ‘’Uma mensagem para o Velho Lamm e seus costumes pagãos. ’’
            - Isso me cheira a merda, isso me cheira a cristãos. – Resmungou Lamark.
            - Aqueles que falam do Deus pregado? Mas eles não falam de paz?
            - Eles falam mentiras.
            Era algo infrutífero, o fugitivo ainda possuía muita vantagem em sua fuga. Ainda era possível ver as marcas de seu cavalo na estrada, contudo começava a chover e logo qualquer pista que deixasse para trás seria apagada. Em meio a seus devaneios investigativos, Levin o interrompe.
            - Senhor, olhe aqui! Parecem pegadas. – Levin conseguiu observar isso já que ia a um passo mais lento, Lamark reteve seu cavalo e virou-se para ver o que tinha ali.
            - Ele saltou do cavalo e fez com que continuasse a correr para tentar nos despistar. – examinando um pouco a cena foi possível observar que realmente havia marcas do salto do cavalo feito pelo sujeito e do caminho que se seguia para dentro da floresta. – Fique aqui e cuide dos cavalos, eu o seguirei, fez bem, Levin.
            - Somente minha obrigação e gratidão aos Land.
            Lamark chegou à margem da floresta, examinando cuidadosamente as ultimas pegadas antes de se perderem entre as raízes e arbustos. A chuva engrossava, antes agravável, agora um pouco fria, mas isso não o incomodava. O som da água nas folhas e troncos era alto e ressoava por todos os lados. Encontrou uma pequena trilha entre as árvores, e seguiu-a, passando por troncos caídos, raízes retorcidas, pisando na terra úmida. Logo avistou uma cabana e assim que a viu, abaixou-se e observou melhor. Havia fogo lá, alguém deve ter acendido para se aquecer. E de fato viu o homem, estava colocando uma capa encharcada no lado de fora e voltava, com um pouco de frio para dentro. Lamark seguiu, buscando não ser percebido, permanecendo imperceptível em meio à chuva, floresta e frio. Ele era isso e isso era ele.
            Aproximando-se da cabana, sacou a espada, com o chiado metálico sendo abafado pela chuva. Deu a volta ficou a frente da porta e a chutou. Os trincos e a fechadura voaram, entrou e apontou a espada para o homem, que descalçava uma das botas. Ele olhou incrédulo para Lamark. Era esguio e possuía um nariz curvado, largou a bota e disse:
            - O que esta havendo? Posso saber por que você arrombou a minha porta? – Antes que Lamark dissesse algo, o homem lançou um punhal, saltando em seguida pela janela, disparando no meio da floresta. O punhal havia atingido a coxa de Lamark, arrancou à maldita lamina que devia estar escondida na bota que o sujeito tirara no exato momento em que entrou, maldita oportunidade. Retomou a perseguição, agora, conseguindo ver o homem na distancia, ele era rápido, se esgueirando entre as muitas árvores. Mas Lamark conseguia acompanhá-lo, não era uma questão de pressa, mas sim de paciência, era uma caçada.
            A floresta ficava mais densa e escorregadia, tudo desfavorecendo uma perseguição, porém, o importante era ter em mente não perde-lo de vista. Lamark corria, respirava, corria e respirava. Correr cansa, mas é algo com que pode se acostumar. Esse tipo de perseguição parece um jogo, é preciso ter precisão em cada passo, estar atento, desviando dos muitos obstáculos, sempre com o foco no objetivo. Não demorou muito para o sujeito diminuir o ritmo e logo a distancia entre eles diminuírem. Constantemente o homem olhava para trás para constatar com desgosto que Lamark se aproximava.
            Estava quase lá, o homem, cansado, praticamente desistindo, pensava quais eram suas chances de sobrevivência se parasse para enfrentar Lamark. Sabendo de seu fim, resolveu subir em uma árvore, agarrou-se ao tronco, meteu o pé em um galho, depois em outro, e em mais um, agarrando firme cada pedaço do tronco que conseguisse encaixar bem a mão até que foi puxado para o chão.
            Quando bateu no solo, sentiu o choque fazer tremer todo o seu corpo. Uma maldita raiz contundiu sua coluna.
- Ai, ai, ah santo Deus, que dor, ai! Calma ai, amigo! Temos um mal entendido aqui!
            - Talvez haja, você trouxe uma mensagem para o velho Lamm?
            - Ah! Uma mensagem? Eu não sei do que você está falando.
            Lamark observou o pequeno artefato de madeira pendurado no peito do homem em formato de cruz. Pisou em seu joelho, fazendo força, de forma a prejudicar a articulação com uma dor rasgada.
            - Céus, fui eu! Fui eu! O que você quer de mim?!
            - Trouxe uma mensagem do Velho Lamm para você. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Inadaptável a cruz

As expedições as terras do oeste não eram mais tão freqüentes como costumavam ser, nesses dias eram poucos os que ainda pensavam nesta prática, as viagens passavam assombrosamente a serem infrutíferas, eram tempos diferentes, nem todos também clamavam mais por isso, por batalha, por saque, isso estava tornando-se passado. Contudo, havia pessoas que viviam somente dessa atividade, guerreiros com o sangue fervendo, que ansiavam por arranhar os céus com suas espadas e machados, honrando sua reputação, enchendo os bolsos com prata e dando movimento a vida, com a morte. Nas terras frias da Escandinávia, o combate, a guerra e a vingança sempre aqueceram o coração dos homens, agora, outra coisa os aquecia, uma superstição, um homem pregado em uma cruz, e aqueles que não se adaptaram aos novos hábitos, estes não se aqueciam.
Sentado em uma mesa, daquelas podres, com a madeira úmida e fria, em uma taberna onde a escória se reúne para brindar as derrotas da vida, estava o verme inadaptável a um novo modo de vida, se adaptaria a uma lança, a um machado, a uma espada, mas não a uma cruz. Sua garrafa já estava no fim, como sua prata também, tirou do bolso os últimos cascalhos de prata que ainda possuía, parecia mais farelo de pão se desfazendo em sua mão, aproximou os olhos para vê-las melhor quando um vento frio soprou e levou-as, a porta velha da taberna havia se arrebentado e agora uma tempestade tomava conta daquela joça. Desesperado cai ao chão procurando suas migalhas de prata, em vão, o vento as levou, como todas as outras coisas que ele possuía, era oficialmente um miserável.
Sua barba grisalha ainda roçava o chão, buscando as ultimas migalhas, recusando-se a convicção de que elas haviam ido embora bem embaixo de seu nariz. Levantou-se, lentamente, sem tirar os olhos do chão, não era possível, ela havia desaparecido mesmo! Voltou-se pra sua mesa, sua garrafa estava virada e vazia, não havia mais nada para ele ali. Foi-se embora, esbarrando no taberneiro que tentava em vão encaixar a porta podre no portal que mais parecia o rugido de um gigante. Lá fora as coisas estavam menos acolhedoras que dentro daquele lugar imundo.
- Os deuses sopram seus desgostos sobre nós... – Balbuciou para si mesmo ao sair para os rugidos frios do clima severo. Estava envolto em uma capa estraçalhada, mas que ainda aquecia, seus pertences eram mínimos, porém ainda persistia uma coisa de valor naquele homem, não, não era seu coração, mas sua espada, em uma bainha ornamentada e bela, e seu respeito aquela jóia a fez perdurar ainda mais que sua fome e sede. Não era uma espada qualquer, mas também eu não sei o que ela era, mas era especial para ele. A qualquer outro andarilho já teriam roubado-a, mas não se tratando deste, suas habilidades perduram nele como o frio perdura nesta terra, e muitos já foram ao chão ao tentar desfazê-lo do seu ultimo bem.
Sentou-se em um daqueles poucos lugares protegidos do vento incessante. Fechou os olhos.
- Coendred, tenho algo que quero que fique sabendo. – disse ela, com seu novo amuleto em seu pescoço tinindo e brilhando demais – Não será mais tolerado isso, precisa tomar sua decisão.
Sua voz era quente, sempre era, mesmo quando a intenção fosse fria.
- Não sou eu que preciso me decidir, é você, isso não nos levará a lugar algum! – Apontou para a cruz em seu peito – mas isso, sim – e bateu no punho de sua espada.
- Então é essa sua escolha? – Disse, chocada.
- A minha escolha é você, e você pertence a mim, venha comigo.
- Eu pertenço a um Deus, não a você. – Sua voz ainda era quente.
- Mas eu não pertenço a ele!
- Nem eu pertenço a você! – Isso foi frio.
Frio, muito frio, seus olhos se abriram, pálpebras duras e pesadas, estava gelado, muito gelado, levantou-se desajeitado, os frangalhos de sua capa colaram onde estava, precisava se aquecer, não havia abrigo nem mesmo um canto de parede para se encostar que não estivesse gelado demais. Então ele viu o lugar, era aquela coisa que construíram, aquele coisa que chamavam de igreja. Já destruiu várias iguais a essa em outro continente, nunca imaginou que encontraria uma dessas em sua terra. E agora, era o único lugar que havia para ir. Encolheu-se em seus fragmentos de capa e marchou contra o vento até alcançar suas portas.
Bateu em sua porta, a madeira era resistente e lustrosa, detalhe perceptível até mesmo na tempestade em que se encontrava. Nenhuma resposta, bateu outra vez, e outra, até fazer-se ouvir por alguém que correu apressadamente. Rangidos da destranca e uma brecha da porta abriu-se para revelar um olhar negligente.
- O que deseja?
- Abrigo.
- Eu conheço você. – O olhar armou-se.
-Abrigo, é o que peço.
- Deus não aceita pagãos em sua casa.
- Olhe, feiticeiro, eu esto...
- Padre, você quer dizer, padre.
- Cretino, eu quero dizer, cretino! – irritou-se.
- Deus não aceita blasfêmia em sua Ca...Ca...- Engasgou-se, a mão do pagão agarrou sua garganta como o abraço de uma mordida. Empurrou a porta e entrou, virou-se e jogou o padre na porta, fechando-a com grande estardalhaço, o homem caiu no chão, agarrando-se ao pescoço, buscando ar para seu corpo.
- Saia... Saia já daqui! Você não é bem vindo aqui!
Coenred, como não era chamado há muito tempo, olhou-o com rancor, viu naquele homenzinho ranzinza e miúdo a culpa de tudo que lhe acontecia, se não fosse por ele, por seu Deus, por sua igreja, ele seria um homem, não a sombra de um verme.
- Não... – Disse, agarrando o homem novamente pela garganta e levantando-o – você que não é bem vindo aqui, não é bem vindo em minha terra, seu desgraçado!
Quando menos percebeu, o olhar que o encarava estava vidrado, frio, morto. Largou o corpo, o padre espatifou-se mole como uma enguia, sequer estrebuchou. Um grito, dois, três.
- Demônio pagão! Assassino! – Surgiram mais e mais vozes.
- Mas que merda! – Havia entrando em uma enrascada na certa, não devia ter matado, não devia, sequer pode saborear o momento, ele não podia ser culpado.
- O que você fez? – Veio uma mulher já com idade encarando-o sem medo. – O que você fez em nome do Senhor.
- Não fiz nada em nome de ninguém. – rosnou e virou-se para partir quando já havia pessoas na porta do outro lado, pior, guardas, guerreiros, homens do Jarl. O capitão da patrulha disse:
- Estamos aqui em nome do Jarl Turdol, a quem jurou seu bracelete, você deve acompanhar-nos.
Sua espada vibrou em sua bainha, seu instinto urgiu em seu âmago, ‘’pelos velhos tempos, brandir a espada, uma ultima vez’’.
- Venha ou será levado a força.
                Sua mão tremia, tateava o punho da arma como se fosse o rosto de uma mulher, ansioso... Mas não. Era jurado ao Jarl, era sua palavra, e não importa se esta a beira da morte ou no início da vida, a palavra deve persistir em seu cumprimento, hesitou e então afastou a mão da espada, fez sinal com a cabeça para os homens e acompanhou-os.
                Estava feliz, não compreendia o porquê, estava satisfeito, por quê? Encrenca. Riu. A casa do Jarl não era longe, e pelo que parecia a audiência era urgente. Enquanto estavam caminhando, estava protegido pelo frio, pelo vento, pelo campo, porém, quando adentrou, rugidos de indignação elevaram se mais que os chicotes da brisa lá fora. O Jarl estava confuso, com cara de alguém que havia acabado de acordar, parecia estar mais irritado por ter acordado no meio da madrugada que pela morte de quem quer que fosse. Havia vários homens da igreja aos seus pés, choramingando como crianças que choram ao pai o castigo do irmão. Mandou que se afastassem e sentou em um trono feito em madeira, em uma pequena plataforma com três degraus. No topo de seu cadeirão havia uma cruz.
                Pediu silencio e disse:
- O que, em nome do que é mais sagrado, houve está noite para que o choro me acordasse com tanta pressa? Que razão foi essa que não pode esperar até o raiar do dia?
Um velho homem, enrugado, seguido por vários outros vestidos como ele, provavelmente o sacerdote líder da igreja, se pronunciou:
- É com muito pesar, meu senhor, que trago a terrível noticia, que esse irmão, afastado da luz por sua crença pagã, veio esta noite, guiado pelo diabo, para assassinar nosso filho mais prodígio!
- Isso é verdade? Quem é testemunha disso? – Mais pessoas que aquela igreja poderia caber levantaram a mão, Coendred ficou se perguntando onde os malditos ratos estavam escondidos. – E o que foi que esse sujeito fez? Qual é seu nome?
- Coendred Riverson, senhor. – respondeu.
- Filho de River Oldson, sua família já foi grande um dia, o que diabos você estava pensando quando fez isso, admite que cometeu esse crime?
- Eu o matei, senhor – Disse.
-Ele admite, admite que cometeu o crime amaldiçoado na casa do senhor! – Disse o sacerdote.
– Porque ele tentou me matar de frio, senhor. – Completou.
- Mentira! – Gritou, exaltado o sacerdote – é mentira, ele o matou, enquanto o padre tentava ajudá-lo! Eu vi! Sequer esperou o padre trazer um pouco de pão e palavra sagrada, agarrou com sua força demoníaca e matou ali mesmo!
- Ele iria me matar de frio, senhor.
- Basta já! O padre estava errado em querer matá-lo de frio – e antes que os sacerdotes pestanejassem – mas, isso não é justificativa, Coendred, você é culpado, amanhã será executado no nascer do dia, você matou, você morrerá, encerramos aqui.
-Senhor, com licença da palavra – pediu o sacerdote, enquanto o Jarl estava se levantando, olhou-o, sentou-se e pediu que prosseguisse. - A execução para esse tipo de crime é determinada nas palavras do nosso grande Deus, ele também é filho de Deus, mas precisa ser purificado. E só há uma morte que purifica o seu espírito sujo, senhor.
- Já ouvi isso, padre.
- Exatamente, a morte por fogo é o caminho da salvação para essa alma, senhor, Deus clama por isso.
- Que seja, então. – Quando o Jarl estava no terceiro degrau, Coendred disse:
- Senhor, tenho direito de pedir um julgamento por combate.
                O Jarl, que já estava pronto para cair em sua cama se reteve, um julgamento por combate, há quanto tempo não ouvia isso? Apesar de ser um homem de Deus, ele reconhecia as leis de sua terra, era seu direito.
- Tem razão, amanhã, então, padre, escolha um campeão, sirva-se de minha guarda, não, não reclame, maldição, é o direito dele, vamos conceder isso, agora, chega todos vocês, levem esse homem pra alguma cela e dêem de comer, ou ele vai ser morto pela fome.
                E assim foi feito, a cela tinha uma cama de palha úmida, deitou-se, conseguindo sentir os ossos estralando em suas costas. Deixaram pão com cerveja, comeu, tomando cuidado para o pão não lhe quebrar os dentes. Após isso, voltou a deitar-se.
                - Isso não está mais funcionando Coen, eu não tenho mais patrocínio para enviar uma nova expedição, sinto muito, não estou mais contratando homens.
                - Eu soube que você partirá em alguns dias, deixe-me ir com você.
                - Não, não posso, dizem que você trará azar a nossa viagem, eu sinto muito...
                -Do que você está falando, Ivar? O que você quer dizer com isso? – Agarrou-o pelos ombros.
                -Me largue, desgraçado, eu não sei, apenas não querem você lá, eu não posso fazer nada!
                - Mas tínhamos um trato, trabalho pra você!
                - Acorde, Coen! Você não serve mais pra nada! Acorde!
O ponta-pé foi bem em seu estomago.
 - Acorde, cretino, o sol nasce e sua hora se aproxima, vai, levante-se!
                Coçou os olhos e tratou de levantar-se. O Sol estava nascendo e realmente sua hora estava próxima. Guiaram ele para o pátio, e apesar de ainda estar escuro, já havia uma platéia que cantavam suas magias em coral, quando Coendred apareceu, todos passaram a cantar mais alto, até um mais exaltado gritar:
                - É a hora de fustigá-lo, senhor! – Outros acompanharam, gritando e apoiando.
                Empurraram-no para o pátio, sob vaias, lama e pedras. O Jarl estava se posicionando em sua cadeira, pediu respeito e deu início a coisa toda.
                - Silêncio, todos vocês, hora vamos! Ótimo, estamos aqui, com a benção do Único Deus, para deixar em suas mãos o julgamento de Coendred Riverson, acusado de assassinato. Será decidido à moda antiga, com combate, Coendred assumi a posição do próprio campeão, enquanto Padre Siles, apresente o seu escolhido. – Passou a palavra para o sacerdote velho da noite anterior.
                - Para representar a mão punitiva de Deus, escolhemos Edgard Asheterolm. Edgar, por favor, se apresente.
                Do umbral da varanda, adiantou-se Edgard, homem sério, austero e forte, carregava a cruz no peito, sobre a cota de malha que brilhava com os primeiros raios de Sol, em seu braço esquerdo, estava preso um enorme escudo de madeira, não era redondo como os que costumavam usar nestas terras, era diferente.
                -Irá pagar o crime cometido, pois Deus está do meu lado.
                - Tenho os meus próprios deuses, eles estão aqui – e sacou a espada.
                O Jarl observando tudo disse:
                - Acalme-se Coendred, tomem suas posições, ao meu sinal. Cada um terá direito a dois escudos. Preparem-se... Lutem!
                Coendred havia acabado de prender o escudo em seu braço, sentindo sua espada se enraizar em sua mão, estava finalmente completo, como a criança que vai ao seio da mãe, como o homem que deita com uma mulher, ele estava absoluto. E atacou, seu primeiro golpe chocou-se com o escudo de Edgar, que se afastou e desferiu um contra-golpe, onde Coen esquivou com facilidade. Encararam-se e chocaram-se outra vez, desferindo novos golpes, se conhecendo, se medindo. Atacou novamente, dessa vez encaixando perfeitamente um corte no joelho esquerdo de Edgar, este recuou e mirou-o em um golpe pesado, partindo seu escudo e jogando-o no chão.
                Coen rolou e desferiu outro golpe abaixo de seu escudo, cortando sua outra perna, porém, nada profundo, a cota de malha protegia Edgar tão bem quanto seu escudo. Levantou-se e pegou o ultimo escudo que tinha direito. E trabalhou bem, controlando golpes bem aplicados com maestria. Edgar estava cansando-se, por baixo da conta de malha e do grande escudo, o homem estava sucumbindo. E Coen soube observar isso. Golpeou pesadamente o escudo de Edgar até esse não resistir e largá-lo, porém este partiu para um encostão, jogando Coen ao chão. Edgar Correu para fincar a espada, mas Coen conseguiu rolar suficientemente rápido, em poucos instantes já estava de pé.
                Largou o escudo no chão, queria algo de igual para igual, estocando e esquivando, sabia que se girasse ao redor dele, iria cansá-lo, a vitoria estava em suas mãos. Atacou, Edgar vacilou, sendo acertado no ombro. Coen manejava a espada, mirando e aplicando perfeitamente os golpes. Estava sentindo que iria vencer, então, Edgar partiu para cima dele, manejando um golpe arriscado, vinha com a espada acima da cabeça, empunhada pelas duas mãos, se ele errasse, morrerá na certa.
                Isso seria simples, firmou-se com o punho da espada, esse tipo de ataque é facilmente bloqueado, com abertura suficiente para um contra-golpe avassalador. Veio o choque das lâminas, quando pensou em fazer as mil coisas que vinham em sua mente, sentiu a espada vacilar em sua mão, sabia que possuía a força para resistir, mas seu punho falhou, e ele sabia, sim, sabia, que foram os Deuses que fizeram isso, havia chegado sua hora. Ele não pertencia a esse lugar, não mais, outro Deus estava imperando ali, não os dele. Seus Deuses estavam reivindicando sua alma.
- eu pertenço a eles...

Sequer viu a lâmina.