-Agora,
acalme-se! – Gritou Eddgar com um tal homem que recebemos aquela noite – vamos
infeliz, respire um pouco e conte tudo devagar – disse, tentando acalmar o
sujeito, esse homem chegara a nosso acampamento há poucos instantes, totalmente
desorientado, afirmando coisas que nem os deuses acreditariam.
- Traga uma
cerveja pra ele, Turjon, qualquer coisa! – Mandou Eddgar, e, antes que eu
esqueça, Eddgar era o responsável pelo nosso acampamento nessas novas terras, a
quem jurei lealdade e servia com minha tripulação, e agora ele estava pedindo a
mim a cerveja, e eu me apressava em atender, não pela autoridade dele, mas pelo
medo de perder alguma parte da historia do sujeito enquanto estivesse fora.
- Uma
cerveja, rápido! – agora era eu quem pedia isso na cabana de mantimentos,
esperando Loug apressar a bunda gorda dele e me trazer uma caneca com cerveja rançosa.
- O que foi
dessa vez? – Perguntou, percebendo a movimentação no acampamento – o que esta
havendo na tenda do Edd?
- Um homem
estranho chegou com historias malucas.
- Disso
fiquei sabendo, o que mais? Ele é do outro acampamento?
- Eu não sei,
chega, conversamos depois.
Apressei-me na volta, sujando a barra da manga de minha
túnica velha com a cerveja derramada na correria, quando entrei na barraca,
todos estavam encolhidos e chorando, até mesmo o próprio Eddgar, que não
derramou uma única lágrima mesmo quando seus próprios filhos morreram. Na
verdade, não eram todos que estavam chorando, o homem não estava, alias, ele
não era ele, era ela, uma velha enorme e séria, e isso me assustou muito mais
que meus próprios companheiros aos prantos. Dei um passo para trás, já havia
largado a caneca e minha mão já estava no punho de minha espada, quando Eddgar
me interrompeu:
- O que você
esta fazendo, imbecil? – disse, entre lágrimas – deixe que ela continue sua
história!
- Mas, a
historia, porque vocês... - estava sem palavras, mas o que eu poderia fazer? O
pior é que não houve necessidade que insistissem que eu ficasse quieto, pois o
simples olhar daquela anciã me gelou e eu travei em meu lugar, agora, enquanto
escrevo isso, ainda sinto meu sangue esfriar, mas não esfriar como o frio de
minha terra natal, mas um frio soprado pelo próprio Hel.
- Agora,
continue, por favor! Oh, por favor! – suplicou Eddgar, e outrora isso me
chocaria, porque Eddgar era duro e frio como o gelo, e estava agora como essa
criança longe do peito da mãe, mas como já falei, eu estava muito atormentado
com minhas próprias impressões.
- Basta,
verme, continuarei. – Disse a velha, e, além de todas essas coisas que aqui escrevi,
ainda lembro-me de como a voz que saiu desse sujeito era estranha, não era a
voz de uma mulher velha mesmo, nem de um velho, era fria e cortante, como uma
criatura da noite, daquelas que as historias contam. Eu senti um peso em mim e
toquei meu amuleto, um velho martelo batido em pedra, aquilo costumava me dar
sorte quando o tocava.
- E quando
quarenta invernos passarem, após o beijo do sol vermelho nas terras do fogo
gelado, uma ferida na terra se abrirá e inundará tudo com o sangue dela, o
sangue vermelho e quente, ninguém pode tocá-lo, ninguém pode sobreviver, e todos
que forem engolidos por esse sangue, irão direto para os salões frios do Hel, e
vejo vocês lá, sim, todos vocês, desbravadores que abandonaram o lar e os
filhos, vocês serão engolidos e morreram longe demais de suas espadas para
garantirem a festança dos salões altos, agora, você... – Nesse momento, olhou
para mim – mas você será pior – se fosse possível gelar mais do que eu já
estava, eu teria virado um gigante de gelo, não tão grande, mas seria uma coisa
parecida. – cairá na chuva de espinhos e demorará a eternidade para morrer,
verá todos serem engolidos e mortos e não poderá fazer nada, a terra engolirá
suas pernas e verá o fim dos que ama e dos que pensou amar, você vai...
Nesse momento, um dos nossos companheiros, Medrid, entrou
na tenda, vestido para o combate, aliás, em combate, pois, assim que apareceu,
ele trouxe todo o som do ambiente, e impressionante como antes estava tão
silencioso enquanto ouvíamos a anciã, agora havia a explosão do confronto lá
fora.
- Atacados!
Estamos sendo atacados! Senhor Eddgar... oh deuses, o que esta havendo aqui? –
Disse Medrid encarando a cena que já expliquei.
- Atacados? –
Fui o único a percebê-lo.
- Sim, por Freya,
o que esta havendo aqui? Rápido, precisamos agir! Senhor, senhor!
Eddgar não atendeu o chamado, nem nenhum dos outros, e eu
percebi, de alguma forma, que não faríamos nada se esperássemos por eles, então
me levantei e fui até Medrid.
- Vamos, eles
não estão mais aqui, eu não sei o que está havendo, vamos! – O puxei para fora
da tenda, com a impressão de que minha alma ficava lá dentro, porém o calor da
batalha logo esquentou meu sangue e deixei esses fantasmas para trás. – Onde estão
os outros? Onde atacaram?
- Estão na borda
leste do acampamento, os malditos galeses espreitaram pela noite e trouxeram
grande força, mas que bosta, nós não esperávamos por essa! – Disse Medrid,
voltando ao normal, me acompanhando, enquanto descíamos a pequena encosta que
levava a tenda do Senhor Eddgar.
A situação não estava boa, os nossos inimigos atacavam
com força brutal e mal tivemos tempo de nos reunir a nossa parede de escudos,
pois pouco antes de chegarmos, ela já estava rompida e espadas e machados
faziam a chuva de ferro.
- Rápido, reúnam
eles aqui, vamos, AQUI! – gritei, já de escudo, e agora, não me lembro onde o havia
pegado – aqui! Sim!
Por sorte, muitos vieram e se juntaram a nós e refizemos
uma parede de escudos a tempo de não perdermos tudo. Registro aqui apenas os
acontecimentos desse episodio que mudou a minha vida, e penso se alguém, quando
algum dia ler isso, saberá o que é uma parede de escudos, penso que claro que
sim, saberão, pois é algo constante e definidor nas guerras e guerras são
constantes e definidoras, mas algo me diz que as coisas mudam, e isso pode
mudar. A parede de escudos era um método de combate onde nos alinhávamos,
emparelhando escudo com escudo, a fim de termos a formação de uma parede, e
dessa forma, resistirmos aos beijos do confronto, nos protegendo e atacando, a
parede que fosse rompida teria a derrota certa. E fora isso que acontecera conosco, mas por sorte conseguimos refazer outra com os poucos que sobraram.
Muitas das nossas tendas estavam em chamas, malditas
flechas incendiárias aquelas, dando uma luminosidade crepuscular no ambiente, e
senti o temor tocar meu coração.
Meu escudo sobrepunha o de Medrid, que sobrepunha o de Flish,
que por ai se seguia, nos travamos e observamos os galeses formarem sua parede
de escudos também. Com todo o acampamento alertado, nosso lado passou a possuir
maior contingência, o que intimidou os galeses e nos instigou ao desafio,
passando para o canto da batalha, batendo em nossos escudos e ovacionando
gritos de desprezo e desafio. Vendo nosso inimigo intimidado, começamos a
avançar, passo a passo, mantendo a parede formada. Não demorou em chocarmos
nossas paredes e perfurar nossos inimigos. A luta foi dura, mas estávamos em
vantagem, então foi uma questão de tempo para quebrarmos a parede, rompendo
toda a formação inimiga, entrando nela e trucidando-os. Lembro-me que naquela
noite a minha espada, a Estrela vermelha, bebeu muito sangue inimigo. Nossa
vitoria estava tão bem garantida, que já estávamos tomados pela certeza, os
nossos inimigos fugiram e nos os perseguimos pelo campo aberto até a borda da
floresta mais próxima. Nosso erro.
Aquela amaldiçoada floresta soprou um vento mortal sobre
nos. Um vento de aço, que cuspiu setas em todos que estavam comigo, e nos pegou
de uma forma tão desamparada que foi avassalador. Muitos morreram, isso não
preciso explicar, mas alguns sobreviveram, e eu tive o azar de ser um deles,
deixe-me dizer como tudo aconteceu. Como já havia dito, estávamos perseguindo
os poucos sobreviventes e os malditos nos levaram para uma armadilha, pois não
é que havia uma força arqueira escondida naquela maldita floresta? Eles
despejaram uma chuva de flechas e todos ao meu redor foram despencando. Fui
atingindo no ombro com tamanha força que fui lançado para trás, esbarrando em
outro guerreiro e indo ao chão. Quando olhei pra cima, o guerreiro que havia
esbarrado, já estava com uma flecha plantada na goela, ajoelhou-se agonizando e
dei sua arma para segura-la em seu ultimo momento, essa coisa de segurar armas
era importante para nós. Tentei me levantar, mas as saraivadas continuavam e vi
muitos caírem enquanto ainda não tinha se levantado, e me pergunto agora,
porque não fiquei onde estava, pois assim que me levantei, fui atingido em meu
joelho, à flecha atravessou e brotou do outro lado, aquilo parecia possuir os
elementos de Thor, pois senti meu corpo ser atravessado por um trovão! Não
consegui cair, a princípio, pois a flecha impedia que eu dobrasse meu joelho, essa
flecha era diferente das outras, possuía uma pluma vermelha sangue, sangue
mesmo, não duvidei de que fosse sangue, enquanto fiquei nesses pensamentos
loucos outra dessas atingiu a minha outra perna boa, e a força foi tamanha que a
lançou para trás, fazendo me cair de cara na relva.
Teria morrido ali se nossa força não tivesse recuado e
algum bom companheiro ter me arrastado, meu ultimo olhar para a borda da
floresta me fez tremer e estrebuchar feito um maluco, o que vi é difícil de
acreditar pois a mesma velha maligna que encontrei no acampamento pouco antes
disso tudo, estava lá, com um arco negro e flechas vermelhas, sorrindo para
mim. Bruxa.
No acampamento, fiquei sabendo que Eddgar e os outros
foram consumidos pelo fogo que atingiu a tenda e não fizeram nada, apenas choraram
e morreram. Depois daquela noite nunca mais andei, nunca mais servi para o
combate, nem para cavalgar um cavalo ou uma mulher, fiquei tão inútil como um
bode magro. Voltei as minhas terras e estou aqui para morrer, mas a minha morte
não chega, parece que ela está tão manca quanto minhas pernas, já vi todos meus
entes morrerem, mas continuo aqui, vivo e impotente. E isso me lembra aquela
profecia, ou feitiçaria, ou trama, mas tudo parece ter acontecido de uma forma
ou de outra.
Foi tudo uma farsa, trazer a atenção do líder do
acampamento enquanto planejavam um ataque, mas, teria sido mesmo isso? Nunca vi
Eddgar chorar daquela forma, e um guerreiro de tantos confrontos, morrer como
um cabrito, dentro daquela tenda em chamas... Não só ele, como os outros
também, e o que aconteceu comigo, ‘’ cairá na chuva de espinhos e demorará a
eternidade para morrer, verá todos sendo engolidos e mortos e não poderá fazer
nada, a terra engolirá suas pernas...’’ Foi ela que atirou em mim, sei disso,
mas, será possível ter sido mesmo ela? Eu não consigo acreditar, magia ou farsa?
Profecia ou armadilha? Talvez esses sejam os escritos tolos de um velho que
esta ficando ranzinza e devagar demais nos pensamentos, dizem que quando
envelhecemos demais, voltamos a pensar como crianças, e talvez seja o que
esteja acontecendo comigo, então basta e chega por aqui.