terça-feira, 18 de maio de 2010

Charlotte e seu espelho


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Oh, pobre Charlotte, sim, ando observando o sofrimento da pobre Charlotte tem um tempo, sabe, como observo a vida de muitos outros, a de Charlotte, oh, a pobre Charlotte me chamou atenção. Toda noite eu posso ouvir seu choro, toda a manha eu vejo o seu esforço para acordar bem. Sendo pisada todos os dias, tratada mal pelos parentes, sendo xingada no trabalho, sendo ignorada na escola, ninguém a amava, pelo menos era o que ela pensava, sem esperança alguma a pobre Charlotte segue sua vida triste e sem cor. Mas um certo dia aconteceu algo novo na triste rotina de Charlotte, ela ganhou um presente, não se sabe de quem, nem mesmo eu que a observo o tempo todo vi quem deixou, na verdade eu vi sim, mas não vou contar. Ela ganhou um espelho. Estava na sua cama quando havia voltado da escola e trabalho, abriu o pacote, curiosa, nunca havia ganho um presente se bem lembrava, abriu ele com um certo carinho, observando os detalhes da embalagem bem fechada sentiu uma certa ternura e achou lindo isso, desembrulhou com delicadeza e tirou o espelho da embalagem. Era um espelho lindo, devia ter uns dois palmos, era bordado com dourado e prata e algumas pedrinhas vermelhas, e se percebi bem aquilo poderia ser rubi, ah se a pobre Charlotte tivesse noção do que tinha em mãos. Achou lindo o espelho mas terrivel o reflexo, queria ser linda para ter orgulho de possuir um espelho tão lindo, quando era mais nova havia ganho um espelho de seu tio, ficara encantada com o proprio reflexo, tão linda, pequenina e morena com olhos enormes e escuros, por ser pequeno ela o carregava para todo canto, adorava conversar com seu reflexo, dizia coisas, era sua propria confidente. Um dia na escola uma jovem garota, devia ter a mesma idade de Charlotte, invejou o seu espelho e o quebrou, mas ah se fosse apenas isso, não, essa garotinha idiota machucou o coração de Charlotte pois disse coisas que magoaria até o mais duro soldado, quanto mais a propria criancinha que Charlotte era, disse que não era digna de usar um espelho, que era tão feia! E jogando o espelho no chão disse que o seu real reflexo era aquele, distorcido. Pobre Charlotte, perdera sua melhor amiga, ela mesma, pois tinha medo de se olhar no espelho, veja, não a julguem mal, ela era uma criança e crianças absorvem esse tipo de coisa com tanta facilidade. Bem, agora ela encarava aquele novo espelho, recordou da historia e se amargurou um pouco, se sentiu feia e mediocre, olhava seu triste reflexo num espelho tão reluzente, tão lindo! Mas derrepente mudou de ideia, via que não era tão feia assim, na verdade, não se achava feia, como se uma epifania de beleza lhe atacasse , ela começou a se admirar, maravilhada em como nunca havia se dado conta de sua beleza, seus olhos, suas bochecas rosadas, seus cachos emoldurando seu rosto liso. E entao viu seu sorriso, algo tao raro, qual a ultima vez que havia sorrido? Nossa, nem mesmo eu lembro, e la estava ela observando seu proprio sorriso, tocou com a ponta dos dedos nos labios, como quem toca em uma escultura fragil, como se o menor toque fosse demonstar o sorriso em mil pedacinhos, foi sentindo, tocando, abrindo cada vez mais o seu sorriso e era tão lindo, começou a chorar comovida com esse sorriso guardado a tanto tempo. Pensou em se maquiar, havia um batom velho na gaveta da comoda ao lado, pegou ele, apoiou o espelho e passou nos lábios, cada vez mais linda, cada vez mais interessante, curiosissima, passou sombra nos olhos, se maquiou toda! O pai dela gritou algo como ''venha fazer essa janta sua porquinha!'', mas ela não prestou atenção, continuou se maquiando, ele chamou mais vez, mas ela estava tão mergulhada na sua auto-admiração! O pai entrou no quarto, furioso, como sempre, gritou com ela, ‘''já para a cozinha sua demente, estou com a porra de uma fome!'' olhou para o espelho ''mas que merda é essa?'' e pegou ele ''voce não pode ter uma porcaria dessas'' e fez que ia joga-lo no chao, nesse momento ele parou, olhos vidrados, o braço erguido para arremessar o espelho no chão parou, guardou o espelho na mesa e disse ''deixe pra la'' e desceu as escadas, como se houvesse tomado um banho de agua fria. Olhou abismada para o que acabara de acontecer! O que houvera ali? Como aquilo aconteceu? Correu para o espelho, olhou para ele e, sem perceber falou, observando mais o seu reflexo do que o proprio ato da fala: ''Ele não vai mais nos importunar...''
''Nos''? Bem, eu deixei aquela casa depois daquilo, mas vez em outra voltei e observei que Charlotte não era mais a mesma, ela não era a pobre Charlotte que vinha observando, ela agora era Charlotte e seu espelho.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Lisbon Revisited (l923)


NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos.