Os seus olhos me encaravam com
medo e ódio, ia de minha espada aos meus olhos e depois a minha espada outra
vez e sabia que iria morrer, sabia que eu não teria piedade, sabia que vim me
vingar, é a vingança e agora, nesse momento, eu não consigo definir prazer
maior, não sinto satisfação maior que essa, o sabor vingativo formiga em minhas
mãos e língua, formiga em meus olhos, em meu coração. Senti minha mão apertar
involuntariamente com mais força o punho da espada e era como se
inconscientemente sentisse que meu corpo dissesse que era a hora de consumar o
ato, de realizar o meu desejo a tanto aguardado, sinto a espada vibrar, como se
ela me falasse que esta com sede, a mesma sede que eu, sede de vingança.
Olhei-a, a lamina branca tingida de vermelho, vibrando, como se retribuísse o
olhar e me convidasse a usá-la, que juntos faríamos um bom trabalho, e faríamos
mesmo.
Olhei-o novamente e ele continuava a me encarar, como se tentasse acompanhar
meus devaneios e por algum momento de esperança achou que eu estava indeciso,
então arriscou:
- Posso lhe dar o ouro que quiser se desistir
disso!
- Já tenho ouro...
- Posso te dar mulheres! – continuou como se
achasse que encontraria um caminho para o preço de sua vida poupada.
- Já tenho mulheres.
- Posso te dar espadas, um exercito, se preferir
– prazer, ouro e poder, ele queria me oferecer tudo.
- Não preciso de outras espadas – disse,
encostando a ponta da minha espada em sua garganta – tenho a minha. – Isso o
silenciou, vendo que era em vão tentar me dissuadir, isso me deu tanta raiva,
tanto ódio, mentiroso, cretino, desgraçado! – Pode me dar um pai? – o medo se
estendeu pelo seu rosto assumindo a culpa, derrotado. – Pode devolver a
infância que me roubou? – pressionei a lamina em sua garganta – Pode devolver
irmãs molestadas? Pode trazer uma mãe de volta a vida? – Senti a ponta da
espada romper sua garganta levemente e vi o sangue escorrer fino ao longo dela
– Pode desfazer todo o mal que sua maldita mão fez? Não... Você não pode me dar
nada... – o sangue escorria de sua garganta e boca e ele arfava tentando
respirar, engasgando. – Não – continuei – você pode me dar uma coisa melhor que
tudo isso, você pode me dar vingança! Eu, Balded Balinson, filho de Balin
Balson, venho matá-lo e enviá-lo ao Hell, Amath, maldito seja, em vingança a
toda ruína e desgraça que você derramou sobre minha família! – E deixei a
espada perfurar sua garganta, deixei-a atravessá-la, senti o corte em sua pele
se alongar e a lamina partir os ossos e brotar em sua nuca, senti com
intensidade tamanha como se a espada fosse parte de mim, senti toda a raiva,
todos os anos de dor, todo o meu mortal desejo, tudo vibrar nesse golpe, senti
toda a historia de minha vida desferida nesse ato, vibrando, reverberando como
um impacto eterno no vazio da minha alma. Ele gorgolejou, estribuchou,
torceu-se, sangrou, sangrou muito, parou, morreu e acabou.
Ouvia os remos batendo
nas águas familiares de minhas terras e a tripulação retirando a cabeça de
dragão da proa do navio para não assustar os espíritos desse lugar. Olhava para
o céu e o mar admirando o prazer de voltar para casa enquanto apertava meu
amuleto e sabia que os deuses estavam orgulhosos. Havia passado a viagem
inteira pensando, mastigando, tentando reviver o que senti, o que passei e
imaginando se já havia alcançado clímax maior em minha vida e isso não saiu de
minha cabeça mesmo quando alcancei os portões de meu castelo, dormi com minha
mulher, abracei meus filhos e dividi espólios, mas não saiu de minha cabeça o
corvo desse pensamento, o êxtase da vingança consumada. Então percebi que nunca
mais terei um momento como esse, é algo único na vida que não poderá ter mais
volta, posso ter batalhas, ouros e fornicar várias vezes mas o sabor da
vingança que provei, nunca mais terei outra vez. Agora entendo que a vingança é
um legado, uma chama, um objetivo, é um destino e eu havia consumado o meu, mas
ainda não havia terminado, eu precisava dar continuidade ao legado, sei disso,
porque é isso que os deuses querem. Isso irá agradá-los. Diverti-los.
Levantei-me durante uma
madrugada de verão e convoquei alguns guerreiros para me acompanharem. Saímos
do castelo e cavalgamos por entre cidades e aldeias próximas, vestíamos ferro e
isso assustava quem ousasse nos perturbar. Chegamos, era um pequeno forte que
permitiu a nossa entrada. No pátio principal cachorros latiam e havia pouco
movimento nas sentinelas, o portão principal se escancarou e saiu Meldred para
me receber.
- Esta tarde para visitar um amigo, mas como
amigo, recebo-o feliz, seja bem vindo, Balded e diga-me o que trazes você aqui
e ajudarei no possível. – O sono ainda o deixava um pouco lento mas ao perceber
que vestíamos conta de malha e estávamos armados ficou totalmente acordado e
preocupado. – Aconteceu alguma coisa? O que se passa?
- Os deuses falaram comigo, Meldred.
- Soube do seu feito, eles estão orgulhosos, mas
do que se trata isso?
- Do que está falando?
- Veio vestido para a guerra e no entanto não vejo
razão nessas terras, tem havido poucos ataques e meus homens tem mantido
afastado todas as ameaças, o que se passa?
- Meldred, os deuses falaram comigo, estou
destinado a passar um legado adiante e esse legado é destinado a sua família.
- Que legado?
- A vingança. – Com um gesto mandei meus homens se
espalharem pelo forte e começarem a trucidar todos que encontrassem pela
frente, menos um. Meldred ficou atônito e se arrependeu por não ter sua espada
em mãos. Gritos começaram a encher a noite e ele me encarou incrédulo.
- O que você esta fazendo? Porque?
- O legado, precisa seguir adiante! – com o punho
da espada atingi sua testa, ele caiu aos meus pés. – Preciso que a vingança
siga adiante, matá-lo aqui e agora na frente de seu filho passará o legado para
ele e um dia ele virá até mim e terá algo que você nunca poderá dar, nem você
nem ninguém, a não ser eu, ele terá o êxtase da vingança.
- Do que está falando? – Disse enquanto se
curvava de dor e tampava o rombo em sua testa. – Está maluco, Balded, foi
amaldiçoado pela loucura, esta maluco! – Nesse momento um choro chegou até nós
e um garoto, com pouco mais de nove invernos, vem arrastado por um dos meus
guerreiros, jogou-o perto de nós e correu para abraçar o pai.
- Pai, pai! Pai, eles mataram a mamãe! A mamãe,
pai! Por favor, salve a mamãe, a mãe! – e chorou, aproximei-me e acertei um
chute em sua barriga, lançando para longe do pai, puxei-o e o segurei firme.
- Olhe nos meus olhos! – Disse, tirei meu elmo e
protetor facial, para que pudesse ver meu rosto – olhe para mim, seu cagalhão,
olhe para o homem que vai acabar com a vida de seu pai! – ele chorou e eu o
balancei para dizer que estava falando sério. – Olhe!
Larguei o no chão e desembainhei minha espada. Estendi minha mão e peguei uma
espada com um dos meus vassalos.
- Tenha essa espada em mãos, Meldred MelianSon,
para que possa lhe enviar para o castelo dos cadáveres. – Ele entendeu e ficou
grato pela misericórdia, tomou a espada e não demonstrou medo ao me encarar,
olhou para o filho e disse:
- Melded, vingue sua mãe, seu lar, seus irmãos –
Engoliu o choro – Vingue-me. - Cortei-lhe a cabeça fora em um único golpe. Ela
rolou e deixei que parasse aos pés de Melded. Ele encarou vidrado o olhar morto
e vazio do pai, fui até ele e o soquei, depois o puxei para fora do forte e o
joguei na areia, levantei-o e mandei que me encarasse, e quando encarei o seu
olhar eu sabia que era esse o olhar que veria pela ultima vez em minha vida, o
olhar da vingança. Chutei-o até cair morro abaixo, voltei e mandei meus
soldados queimarem tudo.
- Azedred – chamei um dos que estavam se ocupando
em por chamas no lugar – quero que fique de olho no garoto, não o deixe morrer.
- Não deixarei, senhor.
Estava feito.
Semanas depois
Azedred pediu para conversar comigo:
- Senhor, o garoto morreu, teve febre e não
resistiu.
- Maldição! Mandei que não o deixasse morrer!
- Não deixei, senhor, tentei pagar medicamentos na
família em que foi acolhido, mas não resistiu de qualquer maneira, morreu,
senhor.
Pensei se a vingança era um privilegio concebido
apenas pelos deuses, se eu tentasse interferir no destino seria sempre em vão,
mas não, eu sabia que era preciso fazer isso, era o legado, e precisava ser
passado, ser feito. Terminei meu caneco de cerveja e disse.
- Convoque os homens, vamos fazer alguns órfãos.