- Acorde – Disse ela – o
Sol beija o céu, como eu beijo você.
- Então você é o Sol? –
ele riu.
- E você é a vasta
escuridão que venho iluminar. - Estavam abraçados, ela, agarrada ao seu peito,
olhos fechados, voltando a dormir, porém ele não, já estava desperto.
Levantou-se e foi se vestir. Pegou uma calça que estava pendurada por trás da
porta do quarto, vestiu uma bata simples, e apanhou suas botas ao lado da cama.
Caminhando pelo quarto observou Lamarkson, sereno em seu sono, quis tocar-lhe o
cabelo, mas preferiu não incomodá-lo. Na pequena lareira de pedra o fogo já
havia se extinguido, ainda assim as brasas ainda formigavam em chamas. Apesar
disso, não estava de todo escuro, como Silned disse, o Sol nascia, porém lento
e frágil, com uma luz tímida, preguiçosa, recusando-se a se espalhar.
Atravessando a sala, apanhou um casaco e a fivela de um cinto, onde pendia a
bainha de uma adaga, afivelou-a em sua túnica e foi até a porta. Sua casa era
um pouco próxima do grande edifício da propriedade. Fechou bem a porta para que
o frio não incomodasse sua família e resolveu caminhar.
Apenas o silvo do vento
em seus ouvidos, o céu contendo as ultimas estrelas enquanto o Sol ia
erguendo-se vagaroso. Nesses últimos dias, o frio e a noite tem aumentado como
eventualmente acontece na Escandinávia. Na Noruega há os grandes invernos e os
grandes verões, talvez isso pareça estranho, se quem lê essa crônica nunca
pisou na terra dos Fiordes. Durante as estações, há o período do Sol noturno,
quando sempre é dia, todas as horas do dia o Sol permanece sem mergulhar no
horizonte, oferecendo sua luz para esta fria terra. No entanto, há também a
chegada da noite absoluta, quando o Sol resolve não mais aparecer. As noites
são longas e nenhuma luz toca a terra a não ser a de fogueiras e tochas. Na
escuridão absoluta dias e noites confundem-se em uma eternidade. Aguardando o
início do inverno, tudo começa com os dias ficando cada vez mais curtos e as
noites mais longas. Apesar dessa grande preguiça do Sol erguer-se, não demorará
a alcançar o outro lado e logo seja noite outra vez.
Quando o Inverno alcança
o seu ponto alto, nenhuma luz vem dos céus, o Sol não alcança mais o horizonte
e os dias tornam-se apenas noites. Apesar de parecer uma coisa sinistra, é
então que começam as festividades, o yule. A partir do momento em que o inverno
alcança seu ponto derradeiro, ele só tende a se esvair e ir embora, por isso as
comemorações e os sacrifícios vem para agradecer aos deuses e desejar boas
colheitas com o verão vindouro. E é apos o yule que haverá a busca.
Em tudo isso Lamark
pensava enquanto caminhava pela fazenda. Aos poucos o movimento de pessoas
aumentava na propriedade e logo já estava a falar e cumprimentar uns aqui e
outros ali. Chegando próximo do grande
edifício do Velho Lamm foi até a área de treinamentos encontrar o seu irmão. A
área de treinamento estava vazia, ali perto, dentro da tenda de armas achou
Torkil mexendo em alguns escudos, uns velhos, outros partidos, outros ainda
novos, com a tinta fresca. Provavelmente estava a separar os que ainda eram
úteis e os que deveriam virar lenha. Em cima de uma mesa de madeira também
estavam algumas espadas de treino, acolchoadas com pele de carneiro. Torkil
percebeu sua chegada e acenou com a cabeça.
- Alo, bode, veio ver o
treino ou participar dele?
- Apenas vim sentir seu
mal - cheiro.
- Então devo estar
melhor, pra vc precisar chegar tão perto pra senti-lo – levantou-se e foi em
sua direção, apertaram as mãos e Lamark juntou-se a ele.
- Separando as boas e as
ruins? Esgmund não faz isso há um bom tempo. – Disse Lamark.
- Percebi isso, mas as
coisas estão suficientemente boas, serve pra criar alguns braços fortes.
Aos poucos se via alguns
jovens moradores se aproximando, provavelmente os alunos de Esgmund. Um deles
adiantou-se para entrar na tenda, era alto e magro, cabelo curto, rente a testa
e olhos pequenos. Colocou a cabeça para indicar que ia entrar.
- Senhores – disse e
esperou a permissão deles, Torkil acenou e este entrou.
- Sou Arsh, Senhores, só
vim para saber se haverá o treino, Esgmund está fora há algumas semanas e...
bem, falaram que o senhor Torkil iria...
- Teremos treino, avise
aos outros, e me esperem. – Completou Torkil, Arsh obedeceu e saiu rapidamente.
Torkil levantou-se, largando mais algumas armas e escudos em cima da mesa.
- Acho que essas também
serviram. Maldito mestre de armas, han? Vamos lá.
Os dois saíram para o
campo de treino e encontraram uns tantos alunos ansiosos. Torkil jogou os
matériais no chão e começou.
- Parece que a folga de
vocês acabou, Esgmund vai passar um tempo fora e eu vou pegar seu lugar por um
tempo e queiram vocês, que seja pouco tempo – virou-se para Lamark e sorriu,
voltou para os jovens - Peguem suas armas, estas daqui também serão úteis,
quero que façam pares e troquem algumas pancadas!
Muito timidamente eles
foram se encaminhando para pegar seus acessórios. Torkil pegou uma pedra e
acertou o joelho do mais devagar e preguiçoso, o garoto topou e dobrou-se sobre
o joelho, gemendo da pancada.
- Mas que porcaria vocês
estão fazendo? Acham que isso é uma aula para aprenderem a tirar leite de vaca?
Eu quero velocidade! Vamos! – e já estava com outra pedra na mão, vendo-os
correndo apressados.
- Terá muito trabalho
pela frente Tork.
- Percebi.
Esses jovens eram os
novos recrutas da região, alguns eram preguiçosos e lentos, outros eram
realmente ávidos para uma boa briga, nada que não se pudesse fazer um excelente
trabalho em cima, não era lá uma preocupação. Logo estavam lutando aos pares e
Torkil e Lamark acompanhavam e corrigiam seus movimentos. Um dos pares insistia
nos mesmos erros, não conseguiam manter o braço do escudo firme e agir com a
espada na outra mão. Torkil interrompeu os dois.
-
Basta, vocês dois, quero que dêem dez voltas no campo de treinamento mantendo
a guarda do escudo e movimentando golpes no ar, entenderam? O resto de vocês,
que tal apreciar uma luta de verdade? – e sorriu para Lamark.
Eles se animaram, Torkil
pegou uma espada e escudo e pediu que Lamark fizesse o mesmo. Arsh deu seus equipamentos
para Lam, o resto dos alunos fizeram um circulo ao redor de ambos. Os irmãos
trocaram mais alguns sorrisos e logo estavam trocando golpes. Lamark era mais
agiu e jovem, desferindo mais golpes, enquanto Torkil mantinha-se sempre atrás
do escudo, medindo cada golpe. Com a guarda mais baixa, Lamark golpeava com
força, fazendo o escudo de Torkil soar alto, porém esse não se intimidava.
Quando chegou a desferir um segundo golpe seguido no escudo de Torkil, este
avançou com o escudo, desequilibrando-o, em seguida, seu golpe acertou seu
braço, deixando mais tarde uma bela marca roxa. Trocaram mais uns sorrisos e
voltaram à luta. Lamark chocou seu escudo contra o de Tork, virando rapidamente
um golpe em seu ombro desprotegido. Aquela também deve ter doido, porém não foi
o suficiente para retarda a reação, Torkil, no momento em que é atingido no
ombro esquerdo, aproveita a deixa para levantar o seu escudo com um escorão e
atingir a mão que Lamark segurava sua espada, esta caiu longe. Ambos riram,
Lamark deu outro escorão com escudo em Torkil e largaram as armas.
- Continua miseravelmente
bem.
- Você nem tanto.
Lamark deixou Torkil com
seus trabalhos e seguiu seu caminho até o grande salão do velho Lamm. Dentro do
prédio, os serviçais fervilhavam, de um lado para o outro, carregando jarras de
leite, água, pão e coisas do tipo, para o desjejum do seu senhor. Ao encontrar
o Velho Lamm, se auto-convidou para o pequeno banquete sentando ao lado do pai.
Eldored estava ali, porém Larza não. Achou melhor não perguntar sobre ela.
Eldorin era outro que não estava presente.
***
Os barcos, uma coisa que
merece um olhar especial não só sobre a utilidade deles, mas também de uma
coisa que diz muito sobre nosso povo, o nosso Navio Longo. Uma longa e estreita
embarcação construída em madeira com uma conjunção de remos onde, ao meio,
erguia-se uma grande viga onde havia uma enorme vela quadrada. Em cada lugar
para um tripulante havia um respectivo remo, menos o do controlador onde
pilotava o barco por meio de um grande remo na popa. Eram formidáveis,
eficientes e rápidos em águas profundas e estrategicamente hábeis em águas
rasas, excelente meio para o transporte de guerreiros, onde era possível criar
um ataque relâmpago e avassalador. Esse tipo de versatilidade tornou o povo
escandinavo tanto inclinado à exploração e comércio como também à pirataria e
pilhagem, com ataques rápidos a costas, o que chamamos de trabalho viking. Na proa do navio era algumas vezes esculpida,
outras vezes, projetada para um encaixe, a cabeça de um animal selvagem e
feroz, usualmente dragões, serpentes e lobos. Usados para afastar os maus
espíritos e plantar o temor no coração dos inimigos que avistassem a grande
fera se aproximando, despejando seus filhos odiosos em sua terra.
Cortando as águas verdes do mar com a enorme barriga de madeira, onde no
topo havia a cabeça de uma serpente, já um pouco agredida pelo freqüente beijo
da maresia, vinha Barriga Cheia, o barco comandado por Fior, olhos miúdos,
braços grossos, barriga grande, um cabelo ruivo, daquele bem alaranjado,
esvoaçava velho e quebradiço ao vento, a barba lhe descia apenas na parte
inferior do rosto, vestia túnica de couro, com certos engastes de malha de aço,
na cintura vinha presa a bainha de sua espada. Braceletes ornavam seus braços,
como os outros ali presentes, mas era visível que era ele que possuía os mais
bem forjados.
Entre seus homens, Crane e Eldorin. Os remos
subiam e desciam, perfurando impiedosamente as águas, impulsionando Barriga
Cheia ao seu destino, nome curioso este, Fior explicou que se devia a sempre
retornar com a barriga do barco cheia de mercadoria e pilhagem para casa. Era
um dia claro, o mar não estava suficientemente agitado para atrapalhar uma boa
navegação. Dentro dele, vários homens conversavam, alguns compartilhavam
bebidas e outros revezavam o trabalho ao remo. E lá estava Eldorin, os braços
inchados e doloridos do continuo movimento exigido pelo remo. Estava cansado,
exausto, e se houvesse outra palavra para definir sua fadiga, seria usável. Sempre
que parava um pouco para sentir as forças voltarem aos braços Crane vinha e lhe
dava uma forte tapa em sua cabeça, os outros homens riam, Fior assistia a tudo
sem tomar parte, normalmente não permitia que a tripulação fizesse esse tipo de
coisa a não ser ele.
- Precisa engrossar esses
braços, garoto, o seu irmão fazia isso o tempo inteiro, logo vai conseguir por
alguma força nesses gravetos – Dizia Crane, voltando-se para os outros e rindo
com eles. Eldorin pensava no porque estava ali, pensamento esse que já sabia a
resposta, contudo, isso ainda o mordia, era para ser humilhado? Era para
tornar-se forte com isso? Mas será que era isso que o tornaria forte? O que
Torkil faria? O que Eldar faria? As risadas já haviam parado e os homens
conversavam sobre outra coisa, Crane era desgraçado o suficiente para não
revezar os remos com ele. Estava cansado, não só dos remos, mas disso, de
Crane.
Largou o remo e
levantou-se, voltou-se para Crane e o acertou no nariz. Crane era claramente
mais forte, mais agiu e mais perspicaz, mas o acertou, sentiu o nariz trincar e
o seu punho doer, como fez aquilo? Algum instinto agia por ele, sacou seu
pequeno punhal e avançou em cima dele. Os homens riam e assistiam a tudo, sem
se importar em interromper, assistir aquilo valia mais que a vida de um dos
dois. Eldorin agarrou o cabelo de Crane e com a outra mão encostou a lamina em
sua garganta, e disse:
- Sua vez. – Os olhos de
Crane não eram de raiva, eram de espanto, podia a qualquer momento ter
interrompido aquilo, mas não o fez, ou não conseguiu?
- Talvez – disse,
enxotando ele e assumindo seu lugar, riu e os homens riram também, deram uns
tapinhas de vitoria em Eldorin e foi entendido que ele realmente merecia
descanso.
- É, Crane, na próxima
vez vou por o garoto para cobrar o que você me deve – disse Ultir, um homem de
cabeça lisa e barba farta, riu e deu uma caneca para Eldorin – tome aqui,
garoto, você merece.
Eldorin estava
satisfeito, e curioso, muito curioso, mas entendeu que esse devia ser o caminho
que devia seguir. E assim se passaram os seus primeiros dias no mar, no mar
propriamente dito, já navegara, como todo bom nórdico, mas não como fazia dessa
vez, uma sensação de pertencimento começou a atingi-lo, e gostava disso. Foi em
um desses dias que presenciou a sua primeira abordagem, seu primeiro saque. Um
enorme navio, característico barco europeu, lento e grande, pairava ao longe,
no horizonte, provavelmente gordo, como dizia Fior, gordo até a goela com
mercadorias. Iriam interceptá-lo.
Era um fim de tarde e o barco
na distancia ia em direção ao Sol. Fior mandou abrir as velas e todos irem aos
remos, avançando em velocidade. Não demorou muito para diminuir a distancia
entre ambos, e logo o grande navio europeu percebeu os atacantes, porém, na
situação em que estavam, sabiam que jamais conseguiriam ultrapassar a
velocidade do barco longo escandinavo. Nenhum dos tripulantes do Barriga Cheia
se preocupou em armar-se, era habito no mar estar sempre pronto, o que não
acontecia muito com os outros povos. Alguns colocavam elmos e outros
divertiam-se com a promessa de arrancar um bom lucro. Fior gritava ordens e
todos obedeciam. Naquele momento, com certeza os tripulantes do outro barco
sentiam o terror ao avistar a cabeça da serpente, com enormes presas de madeira
e uma língua bifurcada, ameaçadoramente, tornando-se distinguível a distancia.
Agora que alcançaram o
navio, emparelharam o Barriga Cheia ao lado direito da embarcação, cuidando
para remover os remos para não deixá-los partidos. Era assumida agora a postura
de combate, todos assumindo uma posição de defesa com seus escudos. Eldorin
estava nervoso e não sabia muito bem o que fazer naquele pouco espaço, mas
tentou seguir a disciplina dos seus companheiros, tentando fixar-se a idéia de
manter o braço do escudo firme. Dessa maneira uniu-se aos outros se protegendo
da defesa do outro barco. Algumas flechas foram atiradas e cravadas e alguns
barris foram lançados, mas nada pesado ou forte o suficiente para desfazer a
formação. Nisso, os primeiros voluntários começaram a sair da parede de escudos
e pular no outro barco e assim dar início ao ataque.
O mesmo homem que deu
bebida a Eldorin, Ultir, foi o primeiro. Avançou lançando-se com o escudo,
dando um grande empurrão em um dos homens do navio europeu, alguns não estavam
propriamente prontos para um combate, vestiam apenas roupas simples de marujo,
outros sacavam armas e agarravam seus escudos, procurando uma formação de
parede de escudos que empurrasse de volta os atacantes.
Coisa
que não funcionou, pois demoraram muito para fazer isso, e rapidamente a
formação foi desfeita com os poucos escandinavos que pulavam no barco, logo o
massacre estava permitido e todos saíram da formação e partiram para o ataque.
Eldorin apenas seguia os outros, tentando defender-se de todos os lados, mas no
fim das contas, não conseguiu ver ameaça alguma, quase todos os guardas do
barco estavam neutralizados. Segurava firme seu machado, o mesmo que sempre
trazia consigo, havia uma historia sobre ele, mas esse não é o momento para
contar sobre isso.
Um
marujo tentou atacá-lo com um punhal, atingindo a borda de seu escudo, riscando
seu ombro, sua reação foi rápida, usando o escudo para acertar o rosto do
marujo. Porém sua experiência ainda não deu a capacidade para fazer isso bem, o
que permitiu que o marujo revidasse, este era bem maior que ele, conseguindo
erguer o braço bem acima de sua defesa, descendo o punhal com força em seu
ombro. Chegou a perfurar, mas raspou fora, perdendo equilíbrio, Eldorin, por
estar com o sangue quente demais para sentir o estrago da lamina, conseguiu
virar-se rapidamente e aproveitar a oportunidade. Acertou o machado nas
costelas do marujo, o homem contorceu-se, apesar do dano não ter sido profundo,
tentou suprimir a dor e usar as ultimas forças que possuía para lutar por sua
vida, disparando como um touro para cima de Eldorin. Interrompido pelo machado
de Crane em sua têmpora. O homem ainda encarou Eldorin, olhos furiosos
esvaindo-se de vida, mas não de raiva, caiu, constatando com surpresa a perda
dos movimentos, da força e da vida.
-
Esta ferido? – Perguntou Crane.
-
Estou? – Já estava perdendo o senso das coisas, estava um tanto ferido.
-
Maldição, Torkil vai me matar se você morrer, garoto, venha, volte ao barco. –
Puxou ele de volta ao Barriga Cheia, não foi difícil pois a situação já estava
controlada. Atravessaram o barco, mas antes de pular a murada Eldorin
reteve-se.
-
Eu estou bem, estou bem. – Disse, sentindo agora a dor percorrer ávida do ombro
ao braço, mas conseguia controlar aquilo.
-
Que seja, garoto, que seja. – Disse Crane – venha, veja se consegue algum
trocado por aqui, pode comer alguma puta irlandesa se sobreviver até lá – e deu
aquele sorriso amarelo.
Conseguiram
arrecadar um bom dinheiro dali. Além de uma mercadoria que valia muito mais do
que a que carregavam, peles, cereais, prata e por ai vai, foi um dia de sorte.
Para eles. O próximo ponto agora era Dublin, trocar e vender no porto da cidade.
A viagem continuou. Fior e os outros ajudaram Eldorin e seu ferimento, nada que
lavagem não resolvesse. A tripulação desenvolvera certo carisma por ele depois
de sua reação com Crane. Então, no horizonte começou a surgir uma sombra que
foi se alongando por todo ele. Era a Irlanda.
Colunas
rochosas tornavam-se, na medida em que se aproximavam, mais distintas. Enormes
ondas chocavam-se nestas paredes rochosas, mais acima se percebia nos altos
relevos uma fina camada verde que, ao longe como estavam, poderia confundir-se
facilmente com musgo em uma rocha, mas que realmente tratava-se de grandes
pinheiros aprofundando um denso emaranhado de árvores e vegetação. Seguiram ao
longo da costa, admirando as grandes formações rochosas, com formatos curiosos,
parecia até mesmo que um gigante resolvera fazê-las. Enfim encontraram o
encontro do mar com o rio Liffey, que corta Dublin, e seguiram por ele. Fior
mandou guardar as velas, agora, os homens remavam e manobravam, na medida em que
a água ia ficando mais rasa. Mesmo assim, relaxados, seguiam a correnteza, com
a promessa de que logo poderiam descansar.
Enquanto
seguiam pelo rio, viam gradativamente as margens a presença de casas, vilas,
barcos de pesca, um pouco mais além, podia se ver as colinas verdes, com farta
relva a balançar sincronizada com o vento. Percebiam-se também os diversos
povoados em seus campos de cultivo e em suas fazendas. Nessas terras o calor
costuma ser mais agradável que nos países nórdicos, no entanto, não era uma
época em que fosse dessa maneira, como na Escandinávia, o inverno também
atingia aqui, mas, ainda assim, era um lugar belo e agradável.
O
movimento de pessoas começava a aumentar e logo indícios da grande cidade estavam
cercando as margens do rio Liffey. Dublin, alguns diziam, foram os escandinavos
que a fundaram com uma colônia há algumas décadas atrás, outros dizem que foram
o celtas dessa região, contudo há de se dizer que ela é muito mais antiga do
que se pode imaginar. Era uma cidade, como tantas outras, com casas em madeira
bem trabalhada, algumas até mesma com paredes de pedra. Bares e tavernas, como
também lojas e estalagens se espalhavam por todas as partes. Aqui, viviam não
só descendentes dos escandinavos, como também o povo celta. Um povo alegre que
não trocava nada por uma caneca cheia. Mas já foram mais. Com a derrota do
ultimo grande exercito, as baixas não se restringiram somente ao campo de
batalha, aqui ficou aqueles que esperaram o retorno de muitos dos que amavam.
Mas era isso, era a guerra.
Finalmente
alcançaram o porto, encostando o barco nas tabuas de madeira. Eszer, um dos
homens de Fior, alto e magro como uma lança, nariz adunco e cabelos escuros, lançou
a corda a um homem que estava esperando, este se apressou a amarrar a
embarcação em um pilar. Logo todos estavam preparando-se para pularem fora e
esticarem um pouco as pernas. Fior foi o primeiro a descer e negociar com o
homem que amarrara o barco, este era baixo, com uma careca surgindo de sua
testa, a barba negra com fiapos dourados, sobrancelhas arqueadas e aparência um
tanto antipática. Crane, percebendo a curiosidade de Eldorin, explicou:
-
Este é o maldito do Pilleris, sujeito sem sal, cuida aqui do nosso barco, e é
quem possui os contatos para despacharmos toda essa porcaria que trazemos.
-
Entendo. – Disse Eldorin.
-
Entende? – Olhou Crane, intrigado – Eu nunca entendi isso.
Os
dois juntaram-se aos demais e saíram do barco, porém Fior reteve-os.
-
Quero que vocês dois venham comigo.
-
Ora vamos, Fior, eu preciso molhar a garganta e outra coisa também! – protestou
Crane.
-
Outra hora, carniça, venha, eu quero que seu garoto venha também.
Crane
olhou com desprezo para Eldorin. – Meu garoto, claro. Vamos lá ver o Gorto?
-
Ele mesmo.
-
Mas você não sabe que aquele sujeito tem uma mula enfiada no cu comigo, porra?
Eldorin
não se surpreendeu de Crane ter esses tipos de amizade.
-
É por isso que você vai lá hoje, Crane, vai se resolver com esse sujeito,
porque diabos, eu não quero ele tendo problemas com minha equipe, entendeu bem?
– Fior aproximou bem o rosto, se encararam até Crane virar, cuspir e resmungar
– que seja.
Então
os dois seguiram Fior e a equipe destinada a negócios, uns ficaram para cuidar
do barco e outros tiveram a graça de poder sossegar. Eldorin não estava lá
muito preocupado com isso, estava, na verdade, admirando a cidade, era bela e
enorme, não conhecia nada parecido lá na Escandinávia, nunca fora muito longe
da propriedade de seu pai, e as cidades centrais ali próximas não eram tão
grandes como Dublin. Aqui havia algo de especial, diferente, devia ser a coisa
celta. Virou-se para Eszer, este também estava acompanhando Fior, e perguntou.
-
Onde estamos indo, quero dizer, quem é esse tal de Gorto?
-
Gorto? Gorto é quem gerencia o comércio aqui, digamos, o nosso comércio, ele
que poe pra frente toda essa tralha que arrecadamos e contrabandeamos. O seu
amigão Crane teve problemas com Gorto na ultima temporada e Fior, bem, ele quer
que se entendam, o Gorto não gosta de contribuir com pessoas que, hmmm, não
gosta.
-
E que tipo de problema Crane teve?
-
Ele se engraçou por uma de suas mulheres.
-
Mulheres?
-
É, garoto, do tipo, seios fartos, corpo cheio de curvas, bom de apertar, sabe?
Você sabe o que é isso?
-
Eu... bem... – Apesar da pele bronzeada e queimada do Sol, se via que ficou
vermelho e encabulado.
Seguiram
pelas ruas, atravessando becos e corredores, a cidade tinha uma subida, onde, a
medida em que subiam, saindo do centro comercial, via-se que a condição das
casas eram melhores, até alcançar os muros de pedra e portões de aço de um
pequeno castelo. Um homem apareceu entre as grades do portão, olhou-os e
concordou que entrassem. Passando pelo portão, pararam e foram revistados,
sendo orientados que deixassem suas armas com a guarda do portão. Era um
castelo, no estilo medieval europeu, com suas muralhas de pedra e grandes
portões de aço. Tudo era muito belo e curioso aos olhos de Eldorin. Entraram e
aguardaram no grande salão até serem chamados por um homem esguio e franzino,
com cabelos oleosos penteados para trás, acompanharam-no. Mas não foi a
imensidão da coisa, o belo castelo nem o verde incomum do lugar que chamou a
atenção de Eldorin no fim das contas, foram as mulheres. Tinha mulheres por
todos os lados, criadas, empregadas, prostitutas, iam e vinham por todos os
lados, não simplesmente vestidas, usavam poucos tecidos de forma provocante.
-
São as escravas de Gorto, não se engrace por nenhuma delas você também, já
basta o chifrudo do Crane. – Avisou Eszer.
Continuaram
caminhando até entrarem em um grande jardim com duas cerejeiras, embaixo delas,
sentado em um belo banco talhado em madeira, quase como um trono, estava o tal
Gorto. Era um homem perspicaz e esperto, via se isso, cabelos curtos e
castanhos penteados para trás com um cavanhaque escuro, quase ruivo, mas
definitivamente castanho escuro, estava bem vestido, com uma túnica branca,
bordada com símbolos vermelhos. Apesar do tipo, não era jovem, devendo estar
alcançando os 40. Percebia-se que estava em sua plenitude. Ao seu redor estavam
várias mulheres semi-nuas, do lado direito havia duas, uma jovem garota
acariciava sua mão enquanto deitava o rosto em seu braço, enquanto outra, bem
mais nova, via-se, quase uma criança, sentava distante, olhos inchados e
algumas marcas vermelhas percorriam seu corpo pequeno e branco. No lado
esquerdo sua mão brincava nos seios de outra, um pouco mais velha, esta ria e
divertia-se acariciando suas pernas. Quando foi avisado da chegada dos
visitantes, fez um gesto para que elas parassem, afastaram-se e sentaram no
outro lado do jardim. Levantou-se sorridente e cumprimentou Fior, este
retribuiu, com um sorriso sóbrio.
-
Meus bolsos estavam sentindo falta do seu retorno, velho amigo, estou
satisfeito com sua volta. – Sua voz era calorosa e eloqüente.
-
Faço o meu melhor, Gorto, sinto tanta falta dos negócios como você, aqui –
estendeu a mão para que Eszer te entregasse um papel contendo o inventário do barco.
– Verifique isso, leve para os seus contadores e veja o que tem para o negócio.
-
Perfeitamente, meu caro – seu sorriso diminuiu quando constatou a presença de
Crane - se quiser aguardar, analisarei isso neste exato momento, Ollis, por
favor, traga-me Ganto, vamos verificar esse inventário. E, quanto a você?
Crane
olhou-o armado, com dentes formigando para agarrarem sua garganta, mas tentou
controlar-se. Fior continuou.
-
Crane veio se redimir.
O
olhar de Gorto foi sombrio.
-
Não devia tê-lo trazido aqui.
-
Ele veio se redimir, Crane, vá se redimir com Gorto. – Disse Fior, Crane olhou
meio sem jeito para ele – você entendeu, ou dê adeus a essa companhia.
Fior
foi até Crane e o puxou, chutando atrás de seu joelho para que se ajoelhasse.
Esse resistiu, caindo apenas sobre uma perna. Fior agarrou o cabelo de sua nuca
e virou o seu rosto para Gorto.
-
Ele quer se redimir, Gorto.
O
instinto de Eldorin fez com que tentasse se adiantar, mas Eszer o conteve.
-
Não se intrometa, vai ficar tudo bem.
Gorto
tirou sua espada da bainha, esta escondida pela túnica. Apontou a lâmina para o
rosto de Crane. – Eu poderia deixá-lo um tanto feio, mas você já é feio
demais... – Então, virou o punho da espada e começou a atingir o seu rosto. No
primeiro golpe o sangue jorrou e sujou a bata branca que vestia, no segundo,
sujou suas mãos e do terceiro pra frente, pareceu-se fartar em uma garrafa de
vinho. Crane tentou resistir, mas Fior o segurou, não teve idéia de quantos
dentes conseguiu cuspir nem quantos engoliu, o punho de aço acertou não só a
boca como também o olho, a testa, abrindo vários cortes, logo estava
irreconhecível e um pouco mais não sobreviveria.
-
Chega – Disse Fior, largando Crane no chão.
-
É, chega. – Terminou Gorto, agora, transformado, cabelos assanhados, rosto sujo
e suado, da boca escorria saliva da raiva investida. Pediu a um dos guardas que
trouxessem uma tal Petri e não foi surpresa quando pegaram a garota mais jovem,
quase uma menina, tinha o cabelo castanho claro, descendo liso com leves cachos
nas pontas, com um nariz arrebitado, de menina, porém os olhos mostravam algo
que dizia que há muito tempo sua infância deixou de existir. Arrastaram-na para
a cena, chegando próximo, Gorto limpou as mãos sujas em seu vestido, este era
branco com rendas verdes, descendo com um corte na perna, em uma mulher feita,
poderia ser um vestido sedutor, mas ali era só uma criança. Agarrou-a pelos
cabelos e a jogou na frente de Crane. Lágrimas silenciosas escorriam de seus
olhos.
-Vê?
Esta vendo? É o que acontecerá com o próximo homem com quem falar! Já disse –
agarrou seu rosto, apertando sua boca – entendeu? – e virou-se para Fior,
largando-a – Que sirva de exemplo, amigo, para todo homem que tentar falar com
ela. Fora isso, foi bom fazer negócio com vocês, amanhã meu agente irá ao porto
encontrá-lo e conferir o inventario, agora, se me derem licença, preciso me
limpar – e sorriu para Crane.
Fior
ordenou que Eldorin e Eszer o carregassem, cada um tomou um braço, passando por
sobre os ombros e o levaram. Eldorin deu um ultimo olhar para Petri. Estava
ajoelhada onde Gorto a havia largado, chorava silenciosa... Quem era aquela
garota...
Saindo da propriedade
voltaram ao centro comercial da cidade, descendo a trilha vagarosamente, quando
alcançaram o grande pátio da cidade, Fior mandou Eszer largar Crane.
- Aqui – jogou umas
moedas para Eldorin – se quiser entrar para a companhia, esteja amanhã no
Barriga Cheia, você tem potencial, garoto. É diferente dele. Sabe onde me
encontrar.
Eldorin ficou largado com
Crane em seus braços, acabando por ceder ao peso, encostando-o na sarjeta.
Pediu que alguém lhe trouxesse água, mas ninguém o ouviu, ou melhor, não quis
ouvir. Resolveu passar o braço por sobre o ombro mais uma vez e o arrastou para
a estalagem mais próxima, sentindo a pontada do ferimento lhe morder. O
problema era que nem todos entendiam o que ele falava. Fez mais um esforço e
entrou no lugar que julgou ser uma estalagem. Ao entrar, muitos encararam com
um olhar inquisitivo, porém ele continuou até alcançar uma mesa. Uma mulher
veio dar assistência, provavelmente a dona da estalagem, que na verdade, não
era nenhuma estalagem, era uma taverna mesmo. Tentou se comunicar com ela, mas
ela não exigiu isso, ajudou a carregar Crane até um quarto de serviços dentro
da taverna. Lá chamou alguns empregados, dentre eles uma garota, falou alguma
coisa com ela que concordou e disse:
- É um dinamarquês? –
Perguntou.
-
Fala minha língua? – Ela virou para a dona e confirmou com a cabeça, voltou
para ele.
-
Podemos ajudar seu amigo, mas requer algum dinheiro, entende, dinamarquês? – Eldorin
tirou tudo o que tinha e jogou para ela, incluindo as poucas moedas que Fior
lhe deu. A garota sorriu.
-
Isso vai servir.
E
serviu. Lavaram seu rosto e fecharam algum dos ferimentos, limparam com álcool
e fizeram compressas nos inchaços, foi um trabalho cansativo, chegando o dia ao
seu fim, o que podia se fazer foi feito. Com a chegada da noite, a garota disse
que por mais algumas moedas poderiam passar a noite no estábulo. Eldorin achou
algumas nas roupas de Crane e com isso, ajudaram a carregá-lo para o estábulo.
A palha estava úmida e o teto estava quebrado, mas era o que podiam conseguir,
e por hora, aquilo era suficiente. Deixaram com eles uma bacia com água caso
Crane acordasse. E assim foi o primeiro dia de Eldorin em Dublin, encostado na
palha, via a cara amassada de Crane nas sombras, até cair no sono.
Foi
durante a madrugada que despertou com Crane tossindo, derrubando a jarra dentro
da bacia, molhando as calças de Eldorin.
-
Mash que djabaaaboss – resmungou algo inaudível enquanto se atrapalhava
tentando mexer nas coisas no escuro.
-
Crane? Você esta bem?
-
Bshh cmoo ushh cobrssh – disse cuspindo alguns dentes, revirou-se tentando
tirar um das ataduras e respirar melhor – ahh! Mas que merda, garoto - parou um
momento, mexeu dentro da boca, e arrancou um dente pendurado. – Que grande
merda, garoto.
-
Você esta bem? Sério, esta? – estava até aliviado em ver aquele cachorro sujo
falar mais uma vez.
-
Como um porco pronto pro abate, ah... – Levou uma mão a testa e sentiu uma
forte pontada - mas que diabos garoto, esse foi um maldito dia.
-
Foi, eu, eu sinto muito...
Crane
pensou em enxotá-lo mais uma vez, mas devia um pouco de gratidão ao garoto.
-
Obrigado, garoto, você é uma daquelas pessoas miseráveis em que podemos confiar
em um momento difícil. O tipo de pessoa que confiaria em uma parede de escudos.
– Tentou levantar a mão para cumprimentá-lo, mas não conseguiu, pois a dor
voltou a acertá-lo. – Maldição, garoto... Onde esta Fior?
-
Ele foi embora, disse que se eu quisesse poderia voltar com eles, mas e você? O
que faremos?
-Pelo
rabo de Thor, eu não acredito nessa maluquice – a mão apertava a têmpora que
latejava sem dó. – Olhe só, Eld, uma coisa terrível esta em jogo, aquela
garota, ela não é o que parece. Aquela garota é filha de Torkil.