quinta-feira, 26 de junho de 2014

O destino dos pagãos XII

- Então você é minha irmã? – perguntou Lanark.
- Não, eu acho que sou sua prima. – respondeu Helga.
- E qual a diferença?
- Eu não sei direito, mas não sou sua irmã.
Estavam colhendo conchas na beira da água, na abertura em que o mar espreitava entre as montanhas para molhar as terras dos Lands, algumas pequenas e coloridas, outras um pouco maiores.
- Minha mãe disse que você consegue ouvir o mar se aproximar uma dessas do ouvido – disse Lanark, mostrando uma concha um pouco maior que as outras. Helga sentou-se na areia e pegou a concha.
- Hmmm, eu não estou ouvindo nada.
- Você precisa colocar bem próximo do ouvido.
- Assim?
- Uhum. – Lanark esperou silencioso Helga dizer que estava ouvindo o mar ali.
- Acho que ouvi dessa vez- ela disse e Lanark sentiu-se aliviado.
- Será que tem barcos dentro dessa conchinha também? Se lá tem água. – disse Lanark pegando a concha de volta, sentando-se e colocando-a entre suas pernas, analisando-a. – Se dentro dessa conchinha tem o mar, então...
- Talvez. – Disse Helga levantando-se – vamos?
- Vamos. - Lanark largou a concha na areia.
Já não estava tão frio como antes e os dias retornavam vagarosamente para iluminar o tempo, podia se ver o verde voltar a vegetação e o calor fazer uma breve visita a Escandinávia. Caminharam juntos até a fazenda, passando por entre alguns pequenos barcos encalhados. Lanark estava mostrando a fazenda para que Helga familiariza-se com ela. Para ele foi uma grande novidade ganhar uma nova pessoa na família, e sentia-se feliz pelo tio ter voltado são e salvo, melhor ainda era ver que o pai também voltou bem. E agora tinha essa nova amiga, pelo menos ele achava que era.
Helga esforçava-se para não parecer alguém estranha demais aos costumes locais, mas bastou um pouco de tempo para ver que as coisas seguiam de forma simples e tranquila por aqui. Silned, mãe de Lanark, ensinara-a a costurar e rendar, tentou aprender a cozinhar algo, mas se dava melhor lidando com os animais da fazenda. Isso era bom pois eles traziam uma paz que ela ainda não encontrara para si mesma. Tirou um tempo para passear com o pequeno Lanark e conhecer melhor a fazenda, era bom porque se sentia à vontade em andar com ele.
            Quando chegaram ao centro da fazenda, Lanark despediu-se dela e juntou-se a outras crianças. Ela estava velha demais para fazer o mesmo, o máximo que podia era procurar aprender alguma coisa com alguém. Voltou para os currais onde provavelmente Geri, um dos funcionários, estaria esperando ela para dar uma mão.
            Próximo da casa do velho Lamm, na área de treinamento, Torkil estava encerrando o treino da manhã. A maioria dos garotos conseguira pegar jeito com a coisa, muito embora um ou outro desse mais trabalho para pegar no tranco. Eldorin abandonaram os treinamentos para voltar a sua fazenda, resolvera aprender a administrá-la com a ajuda de Esgmund nesses dias que precediam a grande viagem. Quanto a Eldored, resolvera ficar para auxiliar o velho Lamm nos fechamento dos planos para a viagem.
            Torkil terminou de guardar os últimos equipamentos e saiu em direção a trilha que levava para o ancoradouro da fazenda, Lamark estava esperando-o. Alongou e sentiu os músculos retesando-se e depois relaxando. Não tivera tempo de pôr os olhos em Helga mas sabia que ela devia estar se virando por ai. Descendo a trilha viu-a ir em direção aos currais, provavelmente estava indo ajudar Geri com as vacas e bodes. Ela gostava disso.
            Caminhou até o pequeno cais da fazenda onde encontrou Lamark e Guth desencalhando o barco de pesca. Não chegava a ser grande como um barco longo nem tão pequeno quanto uma balsa. Devia ter um comprimento de 5 a 6 metros, nas laterais havia um par de remos, e embaixo dos bancos possuía um estoque de arpões usados para atingir as pequenas baleias que costumavam caçar. Tirou os sapatos na beira da água e entrou, ajudando a desencalhar o barco junto com os outros, quando este desprendeu-se do solo, todos pularam para dentro. A água estava fria, mas não tão fria como usualmente era, o céu estava claro, ainda que não o dia inteiro, ele já deixava o dia se estender cada vez mais. No horizonte Erguia-se os fiorde e muito timidamente podia se ver o mar crescendo mais além. Lamark e Torkil tomaram os remos enquanto Guth preparava os arpões.
            - Aonde iremos dessa vez? – perguntou Torkil.
            - Um filhote de baleia anã perdeu-se do grupo na enseada mais próxima, aqui à oeste – apontou Guth, parando de emendar um dos arpões para indicar o lugar na imensidão de agua e rocha. – é a presa perfeita. Foram dias ruins no escuro de sempre, precisamos retomar nosso estoque.
            - Sim – concordou Lamark, puxando e empurrando seu remo.
            A água começou a escurecer na medida em que se distanciavam da praia, atingindo um tom negro. Ambos iam olhando a fazenda ir diminuindo na distância. Foram mudando a rota até irem mais a leste, para onde Guth havia explicado. Remaram em silêncio, remoendo pensamentos inquietos. A viagem estava se aproximando, a grande busca.
– É aqui. – anunciou Guth. Torkil e Lamark pararam de remar e agora puseram-se a inspecionar as águas próximas. Era uma região próxima a um dos grandes fiordes, formando um tipo de meia circunferência. Ao se aproximarem, pode-se perceber a claridade da água rasa em contraste com a profunda em alguns lugares. Provavelmente isso reterá a pequena baleia de sua família, na qual nunca mais voltaria a reencontrar.
Não demoraram para perceber um janto de água a pouco mais de 50 metros de onde estavam, era ela. Voltaram-se em sua direção e remaram de forma vagarosa. Guth preparou um dos arpões e indicou para os irmãos, para saber quem iria disparar.
- Deixe comigo – disse Lamark. Levantou-se e subiu na ponta do barco, preparando o arpão, enquanto vasculhava a área em busca de sua presa. Pela área ser mais rasa, conseguiu observar a mancha negra que se deslocava a alguns metros.
- Tem certeza que era um filhote? – riu, indicando o caminho para que remassem o suficiente para conseguir fazer um bom lançamento. A mancha não era tão pequena, devia possuir uns 6 metros de comprimento, o que indicava que deveria ser um jovem adulto. – Isso é bom.
- Ou mal – disse Guth. Lamark resmungou e preparou o primeiro lançamento. Disparou, a lança voou até descer na direção da mancha a menos de 10 metros, raspou em algo e mergulhou na água.
- Quase – disse, enquanto puxava a corda do arpão, quando terminou de recolher, preparou um novo lançamento, agora, enquanto Guth e Torkil manejavam os remos para que se aproximassem novamente da baleia. Conseguira atingi-la, porém não o suficiente para penetrar sua carne, talvez se chegassem mais perto. Quando a avistou novamente, preparou-se e esperou até que estivessem a menos de 7 metros. Apesar do arranhão, a baleia não estava irritada, aproveitando sua quietude, lançou. O arpão ficou em pé, fincado na carne do animal, balançou-se e desapareceu dentro da água quando a baleia mergulhou assustada. E realmente não se tratava de uma baleia criança, era um adulto, pois tentou reagir ao ataque, lançando-se para cima, cabeceando o barco. Lamark desceu com o impulso, caindo sentado. Apesar de já ter a baleia presa, era necessário abatê-la. Como esta era grande demais, não podiam arrastá-la para o barco e acerta-lhe marretadas. Guth passou outro arpão para Lamark, enquanto Torkil manejava o barco para que pudessem reencontrar o animal.
Seguindo a corda que prendia o arpão preso a baleia, viu-a surgir irritada com o ferimento, pronto para outra investida. Lamark foi rápido, lançando o arpão no que poderia ser a cabeça do animal, que, devido à proximidade, fora atingida com todo o potencial do disparo. Vacilou, chocando-se no casco do barco, resvalando e passando direto. - Rápido, Seguindo a corda que prendia o arpão preso a baleia, viu-a surgir irritada com o ferimento, pronto para outra investida. Lamark foi rápido, lançando o arpão no que poderia ser a cabeça do animal, que, devido à proximidade, fora atingida com todo o potencial do disparo. Vacilou, chocando-se no casco do barco, resvalando e passando direto. – Rápido, passe-me outra! – exclamou Lamark.
            Guth apressou-se em passar mais um dos arpões, Lamark mirou e lançou, atingiu a baleia em suas costas. – Mais uma e será o suficiente- disse.
            A baleia estava zonza, contornava o barco, tentando atingi-lo de alguma forma.
            - Às vezes me espanto com a percepção desse animal. – Disse Torkil.
            - Eu também. – Completou Lamark. Lançou o arpão, dessa vez fora preciso e profundo, penetrando mais que os outros. A baleia ainda tentou reagir, mas sua vida a abandonou. Puxaram-na, preparando-se para amarrá-la com firmeza, para que pudesse ser levada para o cais da fazenda. Foi quando outro espirro na água revelou que esta baleia não estava sozinha. Guth largou os arpões que retirara, levantando-se para que fosse possível ver.
            - Encontramos nosso filhote. – Anunciou. Torkil e Lamark trocaram olhares.
            - Provavelmente este adulto veio procurar o filhote. – Disse Torkil.
            - Como você fez indo a Irlanda. – Falou Lamark.
            - Só que você teve sorte – disse Guth sentando ao lado deles – ela está chorando. Esses monstros se parecem mais conosco do que imaginamos.
            - Monstros.
***
           
            Estava arando a terra, com o retorno do Sol, finalmente podiam voltar a trabalhar na fazenda. Espreguiçou as costas já um pouco velhas enquanto observou a filha e sua mulher carregarem água aos seus animais. Quando retomou o trabalho observou que o cabo do arado estava se partindo. Deu uma boa olhada e viu que com um conserto poderia retardar a rachadura. Foi até o lado de fora de sua casa, onde usava uma pequena tenda como oficina, procurou um martelo e algum pedaço de tabua velha. Quando ouviu cavalos.
            Largou o arado e foi até a porteira da fazenda ver quem chegava. Uma grande comitiva surgiu no caminho. Eram homens vestidos em aço, de 10 a 15 guerreiros, dentre eles, viu um que se sobressaia por sua austeridade. Todos entraram pela porteira escancarada de sua fazenda, ele só podia vê-los fazerem isso.
            - Quem é o dono desta terra? – Disse um dos homens que acabara de descer do cavalo, indo em sua direção.
            - Sou eu, senhor. – o homem encarou-o.
            - Vive sozinho aqui, senhor? – sentiu o suor frio descer atrás de sua orelha. Eram homens do rei, eles andavam vasculhando a área nas últimas semanas. Estavam caçando pagãos. Ele era pagão, assim como sua mulher e filha. Soubera do alarde que Olaf fizera nos últimos tempos, mas esforçara-se para manter seu culto discreto, no entanto era complicado pois sua mulher era uma volva, uma mulher xamã ou bruxa, como eles chamavam. Era difícil esconde-la quando fazia um papel para a comunidade próxima. Vinham a ela todas as semanas em busca de ajuda e conselhos, como poderia escondê-la?
            - Moro aqui com minha mulher e filha. – não adiantaria mentir.
            - Onde elas estão?
            - Nos currais, estão alimentando o pouco de gado que tenho. – o olhar do homem não foi simpatizante. Mandou três dos outros irem vasculhar a fazenda enquanto tirava um pergaminho da roupa.
            - Temos uma denúncia de que aqui mora uma bruxa.
            - É engano, com certeza, meu senhor – apressou-se em dizer.
            - Isso não parece engano – avançou, puxando a gola de sua camisa, revelando um pequeno martelo entalhado.
            - Isso, isso não quer dizer nada – tentou dizer, mas os homens já arrastavam sua mulher e filha.
            - É está aqui – disse um dos homens largando a sua mulher aos pés do sujeito. – Eu a reconheço.
            - Sim, eu imagino que sim. Levem-na. – disse o homem, arrastando a mulher para longe.
            - Ei! Soltem ela, seu desgraçado filho de um bode! – rugiu, mas um guarda o acertou enquanto outro o deteve.
            - E quanto a filha? – perguntou o outro, sem se preocupar com sua reação.
            - Façam o que quiser. – disse, sem demonstrar emoção alguma. A garota gritou e um dos guardas a levou para longe enquanto outro tentava se aproveitar, puxando a garota para si.
             - Não – anunciou o homem austero que não descera do cavalo, como os outros. – Essa pagã terá o mesmo destino de sua mãe. – e, olhando para ele – e de seu pai. Levem-nos. – Disse, virando-se e partindo, a comitiva preparou-se para segui-lo, enquanto os demais preparavam os prisioneiros, a última coisa que ele viu foi o olhar de desgosto do guarda – Olaf nunca nos dá prazer. – Ensacaram sua cabeça com um saco de batata.
            Não teve ideia do tempo em que balançou-se no lombo do cavalo, quase de cabeça para baixo. Sentia-se enjoado e com frio, mas estava desesperado demais para pensar nisso. Não podia fazer nada, estava de mãos atadas. Após um longo período de caminhada, foi descido do cavalo e jogado no chão. Pela areia que sentiu e do som que ouviu, deviam estar em uma praia. Não foi necessário se preocupar demais com o que sua percepção conseguia lhe dizer pois logo puxaram fora o saco de sua cabeça. Levaram-no ao homem austero. Estava encarando as rochas próximas a praia. Virou-se quando largou-o aos seus pés.
            - Sabe quem eu sou? – perguntou o sujeito.
            - Eu não sei, meu senhor.
            - Eu sou um bom homem. – Disse, ajoelhando-se, e encarando-o nos olhos – eu sou Olaf Tryggvason, rei da Noruega e salvador de seu povo. – Ainda encarava-o e temeu o que devia passar em sua mente, sentiu-se fraco e a única coisa que conseguiu fazer foi perguntar por sua mulher.
            - Onde está minha mulher? – quis logo saber, mas o olhar de Olaf não foi apaziguador.
            - Sabe que sua mulher é uma volva, e isso é um crime contra Deus.
            - Minha mulher só faz o bem a nossa comunidade, nunca previu ou jogou o mal para ninguém.
            - Não importa – sentiu a raiva surgindo na voz possante de Olaf – não importa – repetiu – se ela faz o bem se a fonte é o mal, ela precisa ser punida, e você e sua filha também, foram cumplices desse crime contra o grande Senhor Jesus Cristo.
            - Os Deuses falam por ela, senhor, ela tem ajudado os camponeses, nunca fez o mal – suplicou.
            - Seus deuses não passam de demônios! – Olhou irado – Seres do mal agindo contra a vontade de Deus. Então assume que sua mulher falava com demônios?
            - Demônios? Não, não, demônios?
            - Ela fala com demônios, ela precisa pagar por isso.
            - Senhor, eu juro, por fa...
            - Chega! – exaltou-se – Tenho outra coisa que quero tratar com você.
            - O que você quer saber? Promete que não fará mal a minha família se te ajudar, por favor, me diga que não hesitarei em ajuda-lo. – Engoliu em seco, ao que parecia, não estava em posição de fazer nenhuma exigência. Olaf ficou em silêncio.
            - Me diga, sabe do incidente em Nidaros? Da Igreja que foi queimada?
            - A igreja de Nidaros?
            - Sim.
            Ele sabia.
            - O que você quer saber?
            - Sabe de alguém que tenha estado por trás desse atentado?
            - Eu não sei muito, senhor, só sei que foi um dos senhores pagãos remanescentes. Foi o boato que ouvi nas redondezas.
            - Que senhor?
            - O velho. – disse, com amargura.
            - O velho Lamdrak?
            - Sim, é o que eles dizem, eu juro que é a única coisa que sei.
            Olaf encarou-o com um olhar cansado, levantou-se e apontou para as rochas agora, quase submersas com a maré cheia. – Ali está sua mulher.
            - Minha mulher? Onde? – perguntou, confuso, mas Olaf não o respondeu. Procurou com o olhar, desesperado para encontrar algum sinal dela. Foi então que a viu, estava amarrada a uma das rochas, a água beirando seu queixo. Apressou-se para correr e nadar em sua direção, pisando com força na água até conseguir se lançar em um mergulho, nadando desesperado. Não contou quantas braçadas deu nem quantas ondas chocaram-se em seu rosto até alcança-la, estava quase submersa, apenas seu olhar o assistia se desesperar. Mergulhou ao seu redor para tentar libertar suas amarras. Estava fortemente presa a pedra, eram muitas voltas, seria impossível libertá-la sem uma navalha. Subiu para respirar e encarou o seu mesmo olhar, e ele dizia para desistir. Ignorou isso e mergulhou, tentando arrancar à dentadas alguma das amarras. O tempo passava e em sua agonia e pressa, quebrou um dente, ferindo a gengiva com o caco. Subiu para respirar e ela já estava coberta pela água, mergulhou e a encarou, ainda o olhava. Tentou subir para pegar um pouco de ar para passar por sua boca, mas quando encontrou seus lábios, eles estavam fechados. Soprou o ar neles mas nada aconteceu, estavam fechados e frios.           
            Olaf deu um último olhar ao horizonte, verificando o desespero do pobre miserável antes de instigar o cavalo trilha acima. Um de seus guardas, o homem que carregava as sentenças e as listas dos suspeitos de paganismo na região, aproximou-se e perguntou – não vai contar da filha para ele? – ela também estava amarrada as pedras.
            - Vou deixar que descubra sozinho. – Olhou sombrio para o guarda – é o destino que todo pagão merece.

            

domingo, 15 de junho de 2014

Fogo do inferno XI

Já havia parado de chover e o cheiro da estiagem pairava no ar, ia pisando incerto e com passos trêmulos pela trilha lamacenta que serpenteava até a estrada de comércio que levava a Nidaros. Um manto velho surrado descia em capuz, cobrindo-lhe o rosto. O cheiro de estrume de vaca deixava claro que havia passado a última noite em um curral. Quando alcançou a terra mais compacta da estrada e seguiu por ela, encontrou alguns guardas que não deixaram de notar o péssimo cheiro que sentiram do sujeito. Eram apenas dois e não havia mais ninguém na estrada. Um sabor sádico perpassou-os e decidiram provocar.
- Ei, saco de bosta, não pense que vai entrar aqui fedendo a merda, de meia volta e retorne da fossa que saiu – riu o guarda, retirando a bainha da cintura para acertar o mendigo. O pobre homem encolheu-se e procurou seguir seu caminho, fingindo não ter sido chamado atenção. O guarda adiantou-se e o reteve.
- Será que tem bosta dentro dos seus ouvidos, amigo? Que tal se um pouco de surra não tira a merda que você tem na cabeça? – empurrou o sujeito que foi ao chão. O homem espatifou-se na lama, tentando se proteger das pancadas que começou a receber. O guarda acertava pancadas pesadas com a espada embainhada, torcendo para deixar o máximo de lesões possíveis no vagabundo. Foi então que o sujeito virou-se e acertou uma pisada em seu joelho, que dobrou-se para trás, ferindo a articulação e rasgando algum tendão. O guarda foi direto ao chão, caindo de cara na lama, o mendigo desembainhou a espada que foi usada para surrá-lo e a enterrou na barriga, bem abaixo da costela. O guarda gritou de dor mas o mendigo travou a espada e fez com que terminasse rápido.
O outro guarda não estava crendo no que assistia, mas quando pensou em alardear dois outros mendigos surgiram as suas costas e silenciaram ele com uma navalha em sua garganta.
- Arraste-os para a borda da floresta – disse o mendigo olhando ao longo da estrada, verificando se ninguém vinha por ela. Os outros obedeceram e arrastaram os corpos – tirem espada, cota e capa, talvez precisemos – completou Lamark.

Fundada por Olaf Tryggvason, Nidaros era a capital do seu dito reinado e uma das maiores cidades da Noruega. Possuía um grande centro de comércio proporcionado pelo porto próximo do encontro do rio Nidelva e Trondoheimsfjorden. As coisas fluíam rápidas lá, o centro era movimentado e cheio de lojas e tavernas, no porto os homens não paravam de descarregar mercadorias e espólios, enquanto uns negociavam a carga, outros partiam para exportar peles e importar grãos. No centro do mercado haviam trocas de servos por animais e mais ao fundo podia-se ver uma tinturaria, tingindo tecidos, onde escorria pela terra os resquícios da tintura, deixando-a com tonalidades interessantes. Mas o que realmente atraía os olhares para essa cidade era o ponto religioso erguido lá. Saindo do centro e seguindo para longe da margem do rio Nidelva, subia-se ao ponto mais alto de Nidaros, a colina de Storheia. Lá fora erguida a primeira Igreja da Noruega. 
Caminharam em meio as árvores guiado por Guth, que vestia, assim como Lamark, um manto surrado e fedido, desceram uma pequena encosta até encontrarem uma cabana abandonada em meio a uma clareira. Estava velha e metade havia desabado, esquilos fugiram quando se aproximaram. Guth adiantou-se e depois de um momento revirando pedaços podres de madeira, arrastou para fora um grande baú.
- Aqui, Lam, aqui tem o suficiente – disse ele, destravando a tranca e revelando seu conteúdo. Dois grandes garrafões e vários outros menores potes contendo óleo de baleia. Lamark sorriu.
- Eu aposto que sim. Essa maldita igreja não é como as outras, é o que lhes digo, ela é resistente pois foi erguida com aço e pedra, não podemos simplesmente chegar lá e jogar palha queimada para infernizar esses desgraçados, precisamos de mais e isso – apontou para o baú – irá servir.
Era noite de uma comemoração mística cristã, o natal, segundo o Velho explicou, onde festejavam o nascimento do pequeno deus cristão, o próprio Cristo. Em Nidaros haveria o grande evento ministrado por Olaf, e este seria o momento escolhido pelos deuses para retribuir o mal que ele tem feito e ainda assim, um sacrifício aos deuses em homenagem ao yule que se aproximava em alguns dias. Semanas se passaram enquanto rastreavam informações em Nidaros para saber do dia comemorativo e de como as coisas procederiam na cidade. Guth havia chegado antes de Lamark e os outros dois companheiros, Alest e Modric. Descobrira detalhes da cerimônia e sua localização. Agora que haviam verificado o baú, sentaram enquanto Alest tirava de uma bolsa escondida em suas vestes e desenrolava alguns pães e queijo. Quando Lamark pegou o seu, cheirou e preferiu não comentar, ao contrário de Guth.
- Mas que merda, Alest, você usou esse pão pra limpar o traseiro?
Lamark cuspiu.
            Os peregrinos subiam o monte de Storheia vagarosamente através de uma trilha pouco íngreme, seguindo para a proeminente comemoração enquanto um sino reverberava através do início do crepúsculo. A maioria era de mulheres, arrastando crianças e maridos carrancudos. Outros iam ansiosos e tensos, nem todos queriam estar ali, pelo que parecia.
            - A cidade toda veio ver essa mijada? – rugiu Modric de entre as árvores próximas.
            - Parece que são obrigados a isso. – completou Lamark.
            - E são mesmo, eu conversei com um taberneiro – Guth foi explicando – e segundo ele ‘’ louco aquele que não vai’’. Disse que podem ser acusados de paganismo caso não compareçam e não foram poucos os que sofreram na mão dessa gente para aceitar ir para a porcaria do evento. Todo ano é assim.
            - Me pergunto como isso foi acontecer.
            - Dizem que tem magia por trás.
            Era interminável a procissão de peregrinos que subiam o monte, o que tornava simples o acesso ao grande templo erguido no topo da cidade. Havia algumas barracas sendo erguidas a frente da grande igreja e algumas cadeiras foram colocadas para os convidados privilegiados, ao que parecia. A igreja era enorme, maior que qualquer edifício que Lamark já tenha visto nas terras escandinavas, suas paredes eram de pedra e seu teto era de telhas de cerâmica forradas com palha. Sua torre subia alta e em seu tomo zunia incansável um grande sino de bronze. Mais à frente um grande palanque de madeira fora projetado e em meio a isso tudo havia um espaço aberto, o que provavelmente seria para uma apresentação. Não podiam começar a agir ainda, era necessário esperar, tinham muitas mentes atentas no momento.
            Não demorou até todos serem indicados que a cerimônia teria início. Um sacerdote cristão, que Guth explicou se chamar padre ou bispo, subiu ao palanque e deu início.
            - In nómine Pátris et Fílii et Spíritus Sáncti. Amen. – disse, fazendo um sinal em sua fronte com a mão e que a maioria repetiu. – queridos irmãos, hoje estamos reunidos. – era um homem alto e calvo, vestia uma túnica negra com uma facha vermelha rendada em dourado caída sob os ombros. Tinha um olhar cansado mas severo, olhou a todos e continuou – hoje é a sagrada noite do nascimento do menino Jesus.
            Modric cochichou com Lamark. – Ele vai nascer agora?
            - Eu achei que ele já tinha nascido -  completou Alest.
            - Deve ser alguma coisa do tipo.
            - Deve ser.
            O sacerdote continuou a falar sobre a comemoração é deu sinal para uma encenação começar. Um casal chegava a uma tenda cheia de palha para dar à luz a uma criança. Ao que parecia três príncipes foram guiados por uma estrela para presentear o recém-nascido, e com isso todos aplaudiram e fizeram algumas preces ao deus que acabara de nascer. Assistiram em silencio até que fitaram inquietos quando o sacerdote deu lugar a um novo palestrante; Olaf Tryggvason. Lamark já havia visto ele anteriormente quando acompanhou seu pai na última reunião onde os Jarls e senhores nórdicos reuniram-se para debaterem a proposta de Olaf, de legitimar o cristianismo como religião oficial e obrigatória da Noruega. Fora acordado que cada um poderia ter seu próprio culto, muito embora fosse necessário oficializar um, onde todos concordaram em deixar que o cristianismo fosse aceito, contando que fosse dada a liberdade de escolha de cada um para decidir o que queria seguir. A princípio o acordo foi selado e seguido, no entanto Olaf não demorou muito para trair o tratado. Passou a fazer o que já sabemos, a caçar os pagãos.
            Era alto e sério, tinha o cabelo curto e rente aos ombros, a barba era bem cortada e os olhos eram resolutos. Vestia uma túnica vermelha, mas podia se ver a cota de malha por baixo dela, era presa ao meio por um cinto onde pendia uma espada ricamente detalhada. No peito pendia uma cruz dourada incrustada com uma única pedra vermelha e na fronte uma delicada e discreta coroa circundava sua cabeça. Subiu ao palanque e acenou, todos presentes se ajoelharam até ele abaixar a mão e indicar para levantarem-se.
            - Irmãos, louvado seja Deus, nosso senhor. – Todos ressoaram uma resposta. – Nessa noite especial, não deve ser uma noite apenas de comemoração, mas também de lembrar de nosso dever, um dever para o nosso Cristo senhor. Sabemos que a evangelização é o nosso trabalho dado pelo espirito santo e devemos dar continuidade ao que cristo começou na Roma antiga.
            Falava sério e trazia uma força em sua voz, todos olhavam com venerada contemplação, principalmente aos sacerdotes que estavam ao seu redor. Lamark indicou aos outros. – é hora.
            Esgueiraram-se para longe da comemoração e contornaram o grande pátio onde estava havendo a celebração. Aprofundaram-se entre as árvores até alcançarem estacas velhas que antes delimitavam o fim da colina onde então precipitava um precipício, seguiram por ali para não dar chance de serem detectados, contornando a comemoração, traçando o caminho para que conseguissem encontrar a parte de trás da Igreja. Lamark ia a frente, Modric e Alest carregavam o baú e Guth vinha atrás.
            Quando alcançaram o outro lado, continuaram à margem da floresta e observaram. Havia guardas ali, mas poucos, apenas dois, só precisavam ser silenciosos. Lamark assobiou e um dos guardas encarou a escuridão que a noite tornara-se em dúvida, virou-se para o outro e conversaram entre si. Lamark saiu das sombras, com a capa de mendigo escondendo seu rosto.
            - Ei você! – indicou um dos guardas – o que está fazendo ai?
            Lamark acenou a mão, indicando que não era nada demais, arrastou-se até eles e estendeu a mão suja. – esmola para um miserável.
            - Dê o fora daqui – disse um preparando-se para enfiar um ponta pé, mas o outro o conteve.
            - Não faça isso, aqui – remexeu no bolso de sua túnica- aqui, tome, isso deve servir para comp... – foi interrompido por uma flecha em seu peito, largou sua bolsa de moedas e olhou incrédulo o projétil que praticamente brotou em seu corpo. Quando o segundo guarda deu pela situação, Lamark já apunhalara sua barriga, tampando sua boca para silenciá-lo. Indicou para os outros saírem das sombras. Abriram o baú.
             - É preciso que isso seja derramado no telhado e nas paredes. Traçaremos um caminho de óleo interligado para que se inflame de uma só vez. Guth, prepare as garrafas, Modric, você escalará comigo. Alest, você e Guth irão cuidar da parte de trás do edifício. – indicou, apontando para a grande porta e a imensa parede. – Quero derramar na torre, quero dar um espetáculo para Olaf e para os nossos deuses. – todos concordaram, e assim foi feito.
            Modric tirou de sua bolsa cordas e ganchos de aço. Passou-os para Lamark, dando-lhe um cinto de couro por onde passou a corda do gancho, prendendo-a. Fez o mesmo a si mesmo e analisaram o edifício.
            - É alto, mas já subi em coisas maiores – disse Modric. A parede era lisa e não havia apoio algum, a não ser por uma janela fechada no meio do caminho, o que indicava que precisariam usar uma picareta. Devia ter de 15 a 20 metros e daria uma boa queda caso algum pé escorregue-se no mármore molhado da geada. Guth e Alest estavam esperando eles subirem para despejar onde conseguissem sem serem detectados. Então a primeira picaretada atingiu a parede lisa e encontrou as aberturas entre os tijolos. Forçando os músculos, começaram a se impulsionar para cima e a marcha começou. Não demorou até alcançarem a janela e conseguirem descansar um pouco. Prenderam o gancho no portal para aparar alguma possível queda e seguiram. As brechas escorregadias obrigava-os a cravar mais profundamente para sentirem-se firmes, dando um tanto de trabalho mas nada ocorreu de errado até conseguirem alcançar o topo do telhado. Tentaram subir, desajeitados, em cima das telhas, com cuidado para não quebrar nenhuma delas. O céu estava limpo, apesar do vento frio que soprava, o que era bom, sem chuva o fogo correria com maior liberdade até alcançar sua intensidade.
            Lá de baixo, no grande pátio, podia-se ouvir o sacerdote lendo a passagem do livro sagrado cristão. Por cima dos telhados Lamark observou a celebração e algo faiscou em seus olhos. Conseguiu observar Olaf, havia voltado e sentado com os outros sacerdotes, assistindo a celebração.
            Voltou-se para Modric, estava retirando vários jarros de óleo de sua bolsa, passou dois para Lamark e pegou dois, deixou o pacote com os outros jarros e as cordas. Começaram a derramar o óleo. Primeiro na parte da frente do telhado, mais próximo a torre, deixando escorrer entre as telhas até que a palha estivesse bem úmida. Seguiram dessa maneira até molhar a maior área possível que conseguiram. Lamark foi até a torre, subiu nela, escalando e apoiando-se nas dobras. Não era tão alta, e no seu topo encontrou uma grande cruz. Encolheu-se um pouco por trás, para que não fosse percebido seu contraste na escuridão. Levantou o braço e derramou o óleo na cruz, voltando-se para deixar escorrer um tanto de óleo para que possa ser inflamado junto ao telhado.  
            Desceu com cuidado, voltando e tomando cuidado para não escorregar nem pisar na parte molhada, ao alcançarem a outra extremidade, deixou que o resto de óleo que possuía escorresse pelas laterais e pela parte de trás, para que entrasse em contato com o despejado por Guth e Alest. Retornaram e desceram por uma parte limpa da parede, apoiando o pé com firmeza até encostarem no chão. O cheiro forte do óleo pairava no ar.
            Após trocarem as vestes sujas de óleo, acenderam uma tocha. Lamark ajoelhou-se sobre uma perna e fez uma prece aos deuses nórdicos. Era yule e nesse momento na fazenda do velho Lamm deveriam estar comemorando o fim do ponto alto do inverno, o retorno do Sol. Estariam fazendo sacrifícios aos deuses, pedindo uma farta colheita, filhos fortes, boa luta e paz no coração. E ele faria o mesmo. Levou a tocha até uma poça de óleo próxima e deixou o fogo tocar o líquido.
            - Dedico aos deuses esse gesto – disse, deixando largar a tocha – que esse seja a minha oferenda aos antigos deuses de nossa terra, ao nosso pai, ao pai de todos, o grande deus de um único olho. Que em sinal de vingança ele carregue a morada do nosso inimigo. - Então fez se o fogo.
            No pátio parecia que a celebração estava chegando no momento final e mais uma vez a palavra foi dada a Olaf Tryggvason. Todos estavam cansados de assistir a interminável celebração, mas estavam temerosos do que poderia acontecer se fossem embora, mesmo assim um homem velho decidiu partir, sendo interceptado por guardas que o fizeram voltar para o lugar onde estava, xingando consigo mesmo.  
            Olaf havia terminado sua prece quando foi chamado para dar sua última palavra na noite. Estava satisfeito, embora muito trabalho ainda precisasse ser feito. Permitiu-se um gosto especial a si mesmo por tudo que conseguira conquistar e somente essa noite resolveria relaxar quanto a isso. Amanhã seria Natal e era uma época crista de comemoração e recolhimento, de nascimento para uma nova pátria, uma nova Noruega, limpa e pura. Ainda precisaria passar por muita luta para afastar todo o pecado e reivindicar essa terra de Deus, mas ele seria seu guerreiro, seria sua espada.
            Levantou-se e caminhou reparando nos olhares ansiosos de sua plateia. Será que ainda não compreendiam que ele estava salvando-os? Fizera bem e não se arrependia disso. Subiu no palanque e todos o contemplaram com reverencia, era o rei. Não qualquer rei, o rei que os salvou. Agradeceu mais uma vez a Deus em silêncio e voltou-se para eles.
            - Irmãos, foi com grande satisfação que tivemos essa bela e tão grandiosa comemoração, sei que Deus e o seu santo filho estão nos olhando do céu em meio as estrelas – apontou – vejam, não é de espantar que justamente hoje a chuva tenha sido contida? Digo a vocês que foi mais uma ação de Deus para que pudéssemos ter nossa celebração. – e todos olharam com reverência ao céu.
            - Padre Estevan deu-me a honra de encerrarmos a missa orando a oração que o Cristo em pessoa nos ensinou. É importante todos nós orarmos em união porque o inimigo de Deus está em toda parte. – disse deixando suas palavras pesarem sobre todos – e o inimigo de Deus é nosso inimigo. Quem não orar conosco, certamente que não quer unir-se a nós na luta contra o mal e o pecado e porque não iriam querer? Porque devem ser maldosos também. Então, ai daquele que Deus não observar orando! – finalizou, acertando um tapa no palanque, fazendo estalar na madeira. Os espectadores encolheram-se como se o tapa tivesse sido em seus rostos.
            - Bom – olhou severamente a todos, fechou os olhos e então começou – Pai nosso que estas nos céus – disse e esperou um momento, aguardando que todos repetissem suas palavras, então disse mais uma vez, de forma rígida – Pai nosso que estas nos céus! – e, irando-se por ninguém continuar a sua oração, bateu na mesa irritado – o que vocês estão pensando?
             Quando olhou-os, estavam todos horrorizados encarando algo às suas costas. Quando virou-se viu os padres levantarem das cadeiras chocados, voltou-se para a direção em que olhavam e viu a igreja, viu seu contorno brilhante e por um instante achou que estava observando um milagre, a igreja que ele erguera, a primeira em solo pagão, um marco para a cristandade, estava brilhando de divindade... até que a realidade mordeu sua nuca e viu que não era algo divino, era fogo.
            - Santo Deus, o que é isso?

            - É fogo! É o fogo do inferno! – Gritou um padre desesperado.