quinta-feira, 26 de junho de 2014

O destino dos pagãos XII

- Então você é minha irmã? – perguntou Lanark.
- Não, eu acho que sou sua prima. – respondeu Helga.
- E qual a diferença?
- Eu não sei direito, mas não sou sua irmã.
Estavam colhendo conchas na beira da água, na abertura em que o mar espreitava entre as montanhas para molhar as terras dos Lands, algumas pequenas e coloridas, outras um pouco maiores.
- Minha mãe disse que você consegue ouvir o mar se aproximar uma dessas do ouvido – disse Lanark, mostrando uma concha um pouco maior que as outras. Helga sentou-se na areia e pegou a concha.
- Hmmm, eu não estou ouvindo nada.
- Você precisa colocar bem próximo do ouvido.
- Assim?
- Uhum. – Lanark esperou silencioso Helga dizer que estava ouvindo o mar ali.
- Acho que ouvi dessa vez- ela disse e Lanark sentiu-se aliviado.
- Será que tem barcos dentro dessa conchinha também? Se lá tem água. – disse Lanark pegando a concha de volta, sentando-se e colocando-a entre suas pernas, analisando-a. – Se dentro dessa conchinha tem o mar, então...
- Talvez. – Disse Helga levantando-se – vamos?
- Vamos. - Lanark largou a concha na areia.
Já não estava tão frio como antes e os dias retornavam vagarosamente para iluminar o tempo, podia se ver o verde voltar a vegetação e o calor fazer uma breve visita a Escandinávia. Caminharam juntos até a fazenda, passando por entre alguns pequenos barcos encalhados. Lanark estava mostrando a fazenda para que Helga familiariza-se com ela. Para ele foi uma grande novidade ganhar uma nova pessoa na família, e sentia-se feliz pelo tio ter voltado são e salvo, melhor ainda era ver que o pai também voltou bem. E agora tinha essa nova amiga, pelo menos ele achava que era.
Helga esforçava-se para não parecer alguém estranha demais aos costumes locais, mas bastou um pouco de tempo para ver que as coisas seguiam de forma simples e tranquila por aqui. Silned, mãe de Lanark, ensinara-a a costurar e rendar, tentou aprender a cozinhar algo, mas se dava melhor lidando com os animais da fazenda. Isso era bom pois eles traziam uma paz que ela ainda não encontrara para si mesma. Tirou um tempo para passear com o pequeno Lanark e conhecer melhor a fazenda, era bom porque se sentia à vontade em andar com ele.
            Quando chegaram ao centro da fazenda, Lanark despediu-se dela e juntou-se a outras crianças. Ela estava velha demais para fazer o mesmo, o máximo que podia era procurar aprender alguma coisa com alguém. Voltou para os currais onde provavelmente Geri, um dos funcionários, estaria esperando ela para dar uma mão.
            Próximo da casa do velho Lamm, na área de treinamento, Torkil estava encerrando o treino da manhã. A maioria dos garotos conseguira pegar jeito com a coisa, muito embora um ou outro desse mais trabalho para pegar no tranco. Eldorin abandonaram os treinamentos para voltar a sua fazenda, resolvera aprender a administrá-la com a ajuda de Esgmund nesses dias que precediam a grande viagem. Quanto a Eldored, resolvera ficar para auxiliar o velho Lamm nos fechamento dos planos para a viagem.
            Torkil terminou de guardar os últimos equipamentos e saiu em direção a trilha que levava para o ancoradouro da fazenda, Lamark estava esperando-o. Alongou e sentiu os músculos retesando-se e depois relaxando. Não tivera tempo de pôr os olhos em Helga mas sabia que ela devia estar se virando por ai. Descendo a trilha viu-a ir em direção aos currais, provavelmente estava indo ajudar Geri com as vacas e bodes. Ela gostava disso.
            Caminhou até o pequeno cais da fazenda onde encontrou Lamark e Guth desencalhando o barco de pesca. Não chegava a ser grande como um barco longo nem tão pequeno quanto uma balsa. Devia ter um comprimento de 5 a 6 metros, nas laterais havia um par de remos, e embaixo dos bancos possuía um estoque de arpões usados para atingir as pequenas baleias que costumavam caçar. Tirou os sapatos na beira da água e entrou, ajudando a desencalhar o barco junto com os outros, quando este desprendeu-se do solo, todos pularam para dentro. A água estava fria, mas não tão fria como usualmente era, o céu estava claro, ainda que não o dia inteiro, ele já deixava o dia se estender cada vez mais. No horizonte Erguia-se os fiorde e muito timidamente podia se ver o mar crescendo mais além. Lamark e Torkil tomaram os remos enquanto Guth preparava os arpões.
            - Aonde iremos dessa vez? – perguntou Torkil.
            - Um filhote de baleia anã perdeu-se do grupo na enseada mais próxima, aqui à oeste – apontou Guth, parando de emendar um dos arpões para indicar o lugar na imensidão de agua e rocha. – é a presa perfeita. Foram dias ruins no escuro de sempre, precisamos retomar nosso estoque.
            - Sim – concordou Lamark, puxando e empurrando seu remo.
            A água começou a escurecer na medida em que se distanciavam da praia, atingindo um tom negro. Ambos iam olhando a fazenda ir diminuindo na distância. Foram mudando a rota até irem mais a leste, para onde Guth havia explicado. Remaram em silêncio, remoendo pensamentos inquietos. A viagem estava se aproximando, a grande busca.
– É aqui. – anunciou Guth. Torkil e Lamark pararam de remar e agora puseram-se a inspecionar as águas próximas. Era uma região próxima a um dos grandes fiordes, formando um tipo de meia circunferência. Ao se aproximarem, pode-se perceber a claridade da água rasa em contraste com a profunda em alguns lugares. Provavelmente isso reterá a pequena baleia de sua família, na qual nunca mais voltaria a reencontrar.
Não demoraram para perceber um janto de água a pouco mais de 50 metros de onde estavam, era ela. Voltaram-se em sua direção e remaram de forma vagarosa. Guth preparou um dos arpões e indicou para os irmãos, para saber quem iria disparar.
- Deixe comigo – disse Lamark. Levantou-se e subiu na ponta do barco, preparando o arpão, enquanto vasculhava a área em busca de sua presa. Pela área ser mais rasa, conseguiu observar a mancha negra que se deslocava a alguns metros.
- Tem certeza que era um filhote? – riu, indicando o caminho para que remassem o suficiente para conseguir fazer um bom lançamento. A mancha não era tão pequena, devia possuir uns 6 metros de comprimento, o que indicava que deveria ser um jovem adulto. – Isso é bom.
- Ou mal – disse Guth. Lamark resmungou e preparou o primeiro lançamento. Disparou, a lança voou até descer na direção da mancha a menos de 10 metros, raspou em algo e mergulhou na água.
- Quase – disse, enquanto puxava a corda do arpão, quando terminou de recolher, preparou um novo lançamento, agora, enquanto Guth e Torkil manejavam os remos para que se aproximassem novamente da baleia. Conseguira atingi-la, porém não o suficiente para penetrar sua carne, talvez se chegassem mais perto. Quando a avistou novamente, preparou-se e esperou até que estivessem a menos de 7 metros. Apesar do arranhão, a baleia não estava irritada, aproveitando sua quietude, lançou. O arpão ficou em pé, fincado na carne do animal, balançou-se e desapareceu dentro da água quando a baleia mergulhou assustada. E realmente não se tratava de uma baleia criança, era um adulto, pois tentou reagir ao ataque, lançando-se para cima, cabeceando o barco. Lamark desceu com o impulso, caindo sentado. Apesar de já ter a baleia presa, era necessário abatê-la. Como esta era grande demais, não podiam arrastá-la para o barco e acerta-lhe marretadas. Guth passou outro arpão para Lamark, enquanto Torkil manejava o barco para que pudessem reencontrar o animal.
Seguindo a corda que prendia o arpão preso a baleia, viu-a surgir irritada com o ferimento, pronto para outra investida. Lamark foi rápido, lançando o arpão no que poderia ser a cabeça do animal, que, devido à proximidade, fora atingida com todo o potencial do disparo. Vacilou, chocando-se no casco do barco, resvalando e passando direto. - Rápido, Seguindo a corda que prendia o arpão preso a baleia, viu-a surgir irritada com o ferimento, pronto para outra investida. Lamark foi rápido, lançando o arpão no que poderia ser a cabeça do animal, que, devido à proximidade, fora atingida com todo o potencial do disparo. Vacilou, chocando-se no casco do barco, resvalando e passando direto. – Rápido, passe-me outra! – exclamou Lamark.
            Guth apressou-se em passar mais um dos arpões, Lamark mirou e lançou, atingiu a baleia em suas costas. – Mais uma e será o suficiente- disse.
            A baleia estava zonza, contornava o barco, tentando atingi-lo de alguma forma.
            - Às vezes me espanto com a percepção desse animal. – Disse Torkil.
            - Eu também. – Completou Lamark. Lançou o arpão, dessa vez fora preciso e profundo, penetrando mais que os outros. A baleia ainda tentou reagir, mas sua vida a abandonou. Puxaram-na, preparando-se para amarrá-la com firmeza, para que pudesse ser levada para o cais da fazenda. Foi quando outro espirro na água revelou que esta baleia não estava sozinha. Guth largou os arpões que retirara, levantando-se para que fosse possível ver.
            - Encontramos nosso filhote. – Anunciou. Torkil e Lamark trocaram olhares.
            - Provavelmente este adulto veio procurar o filhote. – Disse Torkil.
            - Como você fez indo a Irlanda. – Falou Lamark.
            - Só que você teve sorte – disse Guth sentando ao lado deles – ela está chorando. Esses monstros se parecem mais conosco do que imaginamos.
            - Monstros.
***
           
            Estava arando a terra, com o retorno do Sol, finalmente podiam voltar a trabalhar na fazenda. Espreguiçou as costas já um pouco velhas enquanto observou a filha e sua mulher carregarem água aos seus animais. Quando retomou o trabalho observou que o cabo do arado estava se partindo. Deu uma boa olhada e viu que com um conserto poderia retardar a rachadura. Foi até o lado de fora de sua casa, onde usava uma pequena tenda como oficina, procurou um martelo e algum pedaço de tabua velha. Quando ouviu cavalos.
            Largou o arado e foi até a porteira da fazenda ver quem chegava. Uma grande comitiva surgiu no caminho. Eram homens vestidos em aço, de 10 a 15 guerreiros, dentre eles, viu um que se sobressaia por sua austeridade. Todos entraram pela porteira escancarada de sua fazenda, ele só podia vê-los fazerem isso.
            - Quem é o dono desta terra? – Disse um dos homens que acabara de descer do cavalo, indo em sua direção.
            - Sou eu, senhor. – o homem encarou-o.
            - Vive sozinho aqui, senhor? – sentiu o suor frio descer atrás de sua orelha. Eram homens do rei, eles andavam vasculhando a área nas últimas semanas. Estavam caçando pagãos. Ele era pagão, assim como sua mulher e filha. Soubera do alarde que Olaf fizera nos últimos tempos, mas esforçara-se para manter seu culto discreto, no entanto era complicado pois sua mulher era uma volva, uma mulher xamã ou bruxa, como eles chamavam. Era difícil esconde-la quando fazia um papel para a comunidade próxima. Vinham a ela todas as semanas em busca de ajuda e conselhos, como poderia escondê-la?
            - Moro aqui com minha mulher e filha. – não adiantaria mentir.
            - Onde elas estão?
            - Nos currais, estão alimentando o pouco de gado que tenho. – o olhar do homem não foi simpatizante. Mandou três dos outros irem vasculhar a fazenda enquanto tirava um pergaminho da roupa.
            - Temos uma denúncia de que aqui mora uma bruxa.
            - É engano, com certeza, meu senhor – apressou-se em dizer.
            - Isso não parece engano – avançou, puxando a gola de sua camisa, revelando um pequeno martelo entalhado.
            - Isso, isso não quer dizer nada – tentou dizer, mas os homens já arrastavam sua mulher e filha.
            - É está aqui – disse um dos homens largando a sua mulher aos pés do sujeito. – Eu a reconheço.
            - Sim, eu imagino que sim. Levem-na. – disse o homem, arrastando a mulher para longe.
            - Ei! Soltem ela, seu desgraçado filho de um bode! – rugiu, mas um guarda o acertou enquanto outro o deteve.
            - E quanto a filha? – perguntou o outro, sem se preocupar com sua reação.
            - Façam o que quiser. – disse, sem demonstrar emoção alguma. A garota gritou e um dos guardas a levou para longe enquanto outro tentava se aproveitar, puxando a garota para si.
             - Não – anunciou o homem austero que não descera do cavalo, como os outros. – Essa pagã terá o mesmo destino de sua mãe. – e, olhando para ele – e de seu pai. Levem-nos. – Disse, virando-se e partindo, a comitiva preparou-se para segui-lo, enquanto os demais preparavam os prisioneiros, a última coisa que ele viu foi o olhar de desgosto do guarda – Olaf nunca nos dá prazer. – Ensacaram sua cabeça com um saco de batata.
            Não teve ideia do tempo em que balançou-se no lombo do cavalo, quase de cabeça para baixo. Sentia-se enjoado e com frio, mas estava desesperado demais para pensar nisso. Não podia fazer nada, estava de mãos atadas. Após um longo período de caminhada, foi descido do cavalo e jogado no chão. Pela areia que sentiu e do som que ouviu, deviam estar em uma praia. Não foi necessário se preocupar demais com o que sua percepção conseguia lhe dizer pois logo puxaram fora o saco de sua cabeça. Levaram-no ao homem austero. Estava encarando as rochas próximas a praia. Virou-se quando largou-o aos seus pés.
            - Sabe quem eu sou? – perguntou o sujeito.
            - Eu não sei, meu senhor.
            - Eu sou um bom homem. – Disse, ajoelhando-se, e encarando-o nos olhos – eu sou Olaf Tryggvason, rei da Noruega e salvador de seu povo. – Ainda encarava-o e temeu o que devia passar em sua mente, sentiu-se fraco e a única coisa que conseguiu fazer foi perguntar por sua mulher.
            - Onde está minha mulher? – quis logo saber, mas o olhar de Olaf não foi apaziguador.
            - Sabe que sua mulher é uma volva, e isso é um crime contra Deus.
            - Minha mulher só faz o bem a nossa comunidade, nunca previu ou jogou o mal para ninguém.
            - Não importa – sentiu a raiva surgindo na voz possante de Olaf – não importa – repetiu – se ela faz o bem se a fonte é o mal, ela precisa ser punida, e você e sua filha também, foram cumplices desse crime contra o grande Senhor Jesus Cristo.
            - Os Deuses falam por ela, senhor, ela tem ajudado os camponeses, nunca fez o mal – suplicou.
            - Seus deuses não passam de demônios! – Olhou irado – Seres do mal agindo contra a vontade de Deus. Então assume que sua mulher falava com demônios?
            - Demônios? Não, não, demônios?
            - Ela fala com demônios, ela precisa pagar por isso.
            - Senhor, eu juro, por fa...
            - Chega! – exaltou-se – Tenho outra coisa que quero tratar com você.
            - O que você quer saber? Promete que não fará mal a minha família se te ajudar, por favor, me diga que não hesitarei em ajuda-lo. – Engoliu em seco, ao que parecia, não estava em posição de fazer nenhuma exigência. Olaf ficou em silêncio.
            - Me diga, sabe do incidente em Nidaros? Da Igreja que foi queimada?
            - A igreja de Nidaros?
            - Sim.
            Ele sabia.
            - O que você quer saber?
            - Sabe de alguém que tenha estado por trás desse atentado?
            - Eu não sei muito, senhor, só sei que foi um dos senhores pagãos remanescentes. Foi o boato que ouvi nas redondezas.
            - Que senhor?
            - O velho. – disse, com amargura.
            - O velho Lamdrak?
            - Sim, é o que eles dizem, eu juro que é a única coisa que sei.
            Olaf encarou-o com um olhar cansado, levantou-se e apontou para as rochas agora, quase submersas com a maré cheia. – Ali está sua mulher.
            - Minha mulher? Onde? – perguntou, confuso, mas Olaf não o respondeu. Procurou com o olhar, desesperado para encontrar algum sinal dela. Foi então que a viu, estava amarrada a uma das rochas, a água beirando seu queixo. Apressou-se para correr e nadar em sua direção, pisando com força na água até conseguir se lançar em um mergulho, nadando desesperado. Não contou quantas braçadas deu nem quantas ondas chocaram-se em seu rosto até alcança-la, estava quase submersa, apenas seu olhar o assistia se desesperar. Mergulhou ao seu redor para tentar libertar suas amarras. Estava fortemente presa a pedra, eram muitas voltas, seria impossível libertá-la sem uma navalha. Subiu para respirar e encarou o seu mesmo olhar, e ele dizia para desistir. Ignorou isso e mergulhou, tentando arrancar à dentadas alguma das amarras. O tempo passava e em sua agonia e pressa, quebrou um dente, ferindo a gengiva com o caco. Subiu para respirar e ela já estava coberta pela água, mergulhou e a encarou, ainda o olhava. Tentou subir para pegar um pouco de ar para passar por sua boca, mas quando encontrou seus lábios, eles estavam fechados. Soprou o ar neles mas nada aconteceu, estavam fechados e frios.           
            Olaf deu um último olhar ao horizonte, verificando o desespero do pobre miserável antes de instigar o cavalo trilha acima. Um de seus guardas, o homem que carregava as sentenças e as listas dos suspeitos de paganismo na região, aproximou-se e perguntou – não vai contar da filha para ele? – ela também estava amarrada as pedras.
            - Vou deixar que descubra sozinho. – Olhou sombrio para o guarda – é o destino que todo pagão merece.

            

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