domingo, 22 de setembro de 2013

Inadaptável a cruz

As expedições as terras do oeste não eram mais tão freqüentes como costumavam ser, nesses dias eram poucos os que ainda pensavam nesta prática, as viagens passavam assombrosamente a serem infrutíferas, eram tempos diferentes, nem todos também clamavam mais por isso, por batalha, por saque, isso estava tornando-se passado. Contudo, havia pessoas que viviam somente dessa atividade, guerreiros com o sangue fervendo, que ansiavam por arranhar os céus com suas espadas e machados, honrando sua reputação, enchendo os bolsos com prata e dando movimento a vida, com a morte. Nas terras frias da Escandinávia, o combate, a guerra e a vingança sempre aqueceram o coração dos homens, agora, outra coisa os aquecia, uma superstição, um homem pregado em uma cruz, e aqueles que não se adaptaram aos novos hábitos, estes não se aqueciam.
Sentado em uma mesa, daquelas podres, com a madeira úmida e fria, em uma taberna onde a escória se reúne para brindar as derrotas da vida, estava o verme inadaptável a um novo modo de vida, se adaptaria a uma lança, a um machado, a uma espada, mas não a uma cruz. Sua garrafa já estava no fim, como sua prata também, tirou do bolso os últimos cascalhos de prata que ainda possuía, parecia mais farelo de pão se desfazendo em sua mão, aproximou os olhos para vê-las melhor quando um vento frio soprou e levou-as, a porta velha da taberna havia se arrebentado e agora uma tempestade tomava conta daquela joça. Desesperado cai ao chão procurando suas migalhas de prata, em vão, o vento as levou, como todas as outras coisas que ele possuía, era oficialmente um miserável.
Sua barba grisalha ainda roçava o chão, buscando as ultimas migalhas, recusando-se a convicção de que elas haviam ido embora bem embaixo de seu nariz. Levantou-se, lentamente, sem tirar os olhos do chão, não era possível, ela havia desaparecido mesmo! Voltou-se pra sua mesa, sua garrafa estava virada e vazia, não havia mais nada para ele ali. Foi-se embora, esbarrando no taberneiro que tentava em vão encaixar a porta podre no portal que mais parecia o rugido de um gigante. Lá fora as coisas estavam menos acolhedoras que dentro daquele lugar imundo.
- Os deuses sopram seus desgostos sobre nós... – Balbuciou para si mesmo ao sair para os rugidos frios do clima severo. Estava envolto em uma capa estraçalhada, mas que ainda aquecia, seus pertences eram mínimos, porém ainda persistia uma coisa de valor naquele homem, não, não era seu coração, mas sua espada, em uma bainha ornamentada e bela, e seu respeito aquela jóia a fez perdurar ainda mais que sua fome e sede. Não era uma espada qualquer, mas também eu não sei o que ela era, mas era especial para ele. A qualquer outro andarilho já teriam roubado-a, mas não se tratando deste, suas habilidades perduram nele como o frio perdura nesta terra, e muitos já foram ao chão ao tentar desfazê-lo do seu ultimo bem.
Sentou-se em um daqueles poucos lugares protegidos do vento incessante. Fechou os olhos.
- Coendred, tenho algo que quero que fique sabendo. – disse ela, com seu novo amuleto em seu pescoço tinindo e brilhando demais – Não será mais tolerado isso, precisa tomar sua decisão.
Sua voz era quente, sempre era, mesmo quando a intenção fosse fria.
- Não sou eu que preciso me decidir, é você, isso não nos levará a lugar algum! – Apontou para a cruz em seu peito – mas isso, sim – e bateu no punho de sua espada.
- Então é essa sua escolha? – Disse, chocada.
- A minha escolha é você, e você pertence a mim, venha comigo.
- Eu pertenço a um Deus, não a você. – Sua voz ainda era quente.
- Mas eu não pertenço a ele!
- Nem eu pertenço a você! – Isso foi frio.
Frio, muito frio, seus olhos se abriram, pálpebras duras e pesadas, estava gelado, muito gelado, levantou-se desajeitado, os frangalhos de sua capa colaram onde estava, precisava se aquecer, não havia abrigo nem mesmo um canto de parede para se encostar que não estivesse gelado demais. Então ele viu o lugar, era aquela coisa que construíram, aquele coisa que chamavam de igreja. Já destruiu várias iguais a essa em outro continente, nunca imaginou que encontraria uma dessas em sua terra. E agora, era o único lugar que havia para ir. Encolheu-se em seus fragmentos de capa e marchou contra o vento até alcançar suas portas.
Bateu em sua porta, a madeira era resistente e lustrosa, detalhe perceptível até mesmo na tempestade em que se encontrava. Nenhuma resposta, bateu outra vez, e outra, até fazer-se ouvir por alguém que correu apressadamente. Rangidos da destranca e uma brecha da porta abriu-se para revelar um olhar negligente.
- O que deseja?
- Abrigo.
- Eu conheço você. – O olhar armou-se.
-Abrigo, é o que peço.
- Deus não aceita pagãos em sua casa.
- Olhe, feiticeiro, eu esto...
- Padre, você quer dizer, padre.
- Cretino, eu quero dizer, cretino! – irritou-se.
- Deus não aceita blasfêmia em sua Ca...Ca...- Engasgou-se, a mão do pagão agarrou sua garganta como o abraço de uma mordida. Empurrou a porta e entrou, virou-se e jogou o padre na porta, fechando-a com grande estardalhaço, o homem caiu no chão, agarrando-se ao pescoço, buscando ar para seu corpo.
- Saia... Saia já daqui! Você não é bem vindo aqui!
Coenred, como não era chamado há muito tempo, olhou-o com rancor, viu naquele homenzinho ranzinza e miúdo a culpa de tudo que lhe acontecia, se não fosse por ele, por seu Deus, por sua igreja, ele seria um homem, não a sombra de um verme.
- Não... – Disse, agarrando o homem novamente pela garganta e levantando-o – você que não é bem vindo aqui, não é bem vindo em minha terra, seu desgraçado!
Quando menos percebeu, o olhar que o encarava estava vidrado, frio, morto. Largou o corpo, o padre espatifou-se mole como uma enguia, sequer estrebuchou. Um grito, dois, três.
- Demônio pagão! Assassino! – Surgiram mais e mais vozes.
- Mas que merda! – Havia entrando em uma enrascada na certa, não devia ter matado, não devia, sequer pode saborear o momento, ele não podia ser culpado.
- O que você fez? – Veio uma mulher já com idade encarando-o sem medo. – O que você fez em nome do Senhor.
- Não fiz nada em nome de ninguém. – rosnou e virou-se para partir quando já havia pessoas na porta do outro lado, pior, guardas, guerreiros, homens do Jarl. O capitão da patrulha disse:
- Estamos aqui em nome do Jarl Turdol, a quem jurou seu bracelete, você deve acompanhar-nos.
Sua espada vibrou em sua bainha, seu instinto urgiu em seu âmago, ‘’pelos velhos tempos, brandir a espada, uma ultima vez’’.
- Venha ou será levado a força.
                Sua mão tremia, tateava o punho da arma como se fosse o rosto de uma mulher, ansioso... Mas não. Era jurado ao Jarl, era sua palavra, e não importa se esta a beira da morte ou no início da vida, a palavra deve persistir em seu cumprimento, hesitou e então afastou a mão da espada, fez sinal com a cabeça para os homens e acompanhou-os.
                Estava feliz, não compreendia o porquê, estava satisfeito, por quê? Encrenca. Riu. A casa do Jarl não era longe, e pelo que parecia a audiência era urgente. Enquanto estavam caminhando, estava protegido pelo frio, pelo vento, pelo campo, porém, quando adentrou, rugidos de indignação elevaram se mais que os chicotes da brisa lá fora. O Jarl estava confuso, com cara de alguém que havia acabado de acordar, parecia estar mais irritado por ter acordado no meio da madrugada que pela morte de quem quer que fosse. Havia vários homens da igreja aos seus pés, choramingando como crianças que choram ao pai o castigo do irmão. Mandou que se afastassem e sentou em um trono feito em madeira, em uma pequena plataforma com três degraus. No topo de seu cadeirão havia uma cruz.
                Pediu silencio e disse:
- O que, em nome do que é mais sagrado, houve está noite para que o choro me acordasse com tanta pressa? Que razão foi essa que não pode esperar até o raiar do dia?
Um velho homem, enrugado, seguido por vários outros vestidos como ele, provavelmente o sacerdote líder da igreja, se pronunciou:
- É com muito pesar, meu senhor, que trago a terrível noticia, que esse irmão, afastado da luz por sua crença pagã, veio esta noite, guiado pelo diabo, para assassinar nosso filho mais prodígio!
- Isso é verdade? Quem é testemunha disso? – Mais pessoas que aquela igreja poderia caber levantaram a mão, Coendred ficou se perguntando onde os malditos ratos estavam escondidos. – E o que foi que esse sujeito fez? Qual é seu nome?
- Coendred Riverson, senhor. – respondeu.
- Filho de River Oldson, sua família já foi grande um dia, o que diabos você estava pensando quando fez isso, admite que cometeu esse crime?
- Eu o matei, senhor – Disse.
-Ele admite, admite que cometeu o crime amaldiçoado na casa do senhor! – Disse o sacerdote.
– Porque ele tentou me matar de frio, senhor. – Completou.
- Mentira! – Gritou, exaltado o sacerdote – é mentira, ele o matou, enquanto o padre tentava ajudá-lo! Eu vi! Sequer esperou o padre trazer um pouco de pão e palavra sagrada, agarrou com sua força demoníaca e matou ali mesmo!
- Ele iria me matar de frio, senhor.
- Basta já! O padre estava errado em querer matá-lo de frio – e antes que os sacerdotes pestanejassem – mas, isso não é justificativa, Coendred, você é culpado, amanhã será executado no nascer do dia, você matou, você morrerá, encerramos aqui.
-Senhor, com licença da palavra – pediu o sacerdote, enquanto o Jarl estava se levantando, olhou-o, sentou-se e pediu que prosseguisse. - A execução para esse tipo de crime é determinada nas palavras do nosso grande Deus, ele também é filho de Deus, mas precisa ser purificado. E só há uma morte que purifica o seu espírito sujo, senhor.
- Já ouvi isso, padre.
- Exatamente, a morte por fogo é o caminho da salvação para essa alma, senhor, Deus clama por isso.
- Que seja, então. – Quando o Jarl estava no terceiro degrau, Coendred disse:
- Senhor, tenho direito de pedir um julgamento por combate.
                O Jarl, que já estava pronto para cair em sua cama se reteve, um julgamento por combate, há quanto tempo não ouvia isso? Apesar de ser um homem de Deus, ele reconhecia as leis de sua terra, era seu direito.
- Tem razão, amanhã, então, padre, escolha um campeão, sirva-se de minha guarda, não, não reclame, maldição, é o direito dele, vamos conceder isso, agora, chega todos vocês, levem esse homem pra alguma cela e dêem de comer, ou ele vai ser morto pela fome.
                E assim foi feito, a cela tinha uma cama de palha úmida, deitou-se, conseguindo sentir os ossos estralando em suas costas. Deixaram pão com cerveja, comeu, tomando cuidado para o pão não lhe quebrar os dentes. Após isso, voltou a deitar-se.
                - Isso não está mais funcionando Coen, eu não tenho mais patrocínio para enviar uma nova expedição, sinto muito, não estou mais contratando homens.
                - Eu soube que você partirá em alguns dias, deixe-me ir com você.
                - Não, não posso, dizem que você trará azar a nossa viagem, eu sinto muito...
                -Do que você está falando, Ivar? O que você quer dizer com isso? – Agarrou-o pelos ombros.
                -Me largue, desgraçado, eu não sei, apenas não querem você lá, eu não posso fazer nada!
                - Mas tínhamos um trato, trabalho pra você!
                - Acorde, Coen! Você não serve mais pra nada! Acorde!
O ponta-pé foi bem em seu estomago.
 - Acorde, cretino, o sol nasce e sua hora se aproxima, vai, levante-se!
                Coçou os olhos e tratou de levantar-se. O Sol estava nascendo e realmente sua hora estava próxima. Guiaram ele para o pátio, e apesar de ainda estar escuro, já havia uma platéia que cantavam suas magias em coral, quando Coendred apareceu, todos passaram a cantar mais alto, até um mais exaltado gritar:
                - É a hora de fustigá-lo, senhor! – Outros acompanharam, gritando e apoiando.
                Empurraram-no para o pátio, sob vaias, lama e pedras. O Jarl estava se posicionando em sua cadeira, pediu respeito e deu início a coisa toda.
                - Silêncio, todos vocês, hora vamos! Ótimo, estamos aqui, com a benção do Único Deus, para deixar em suas mãos o julgamento de Coendred Riverson, acusado de assassinato. Será decidido à moda antiga, com combate, Coendred assumi a posição do próprio campeão, enquanto Padre Siles, apresente o seu escolhido. – Passou a palavra para o sacerdote velho da noite anterior.
                - Para representar a mão punitiva de Deus, escolhemos Edgard Asheterolm. Edgar, por favor, se apresente.
                Do umbral da varanda, adiantou-se Edgard, homem sério, austero e forte, carregava a cruz no peito, sobre a cota de malha que brilhava com os primeiros raios de Sol, em seu braço esquerdo, estava preso um enorme escudo de madeira, não era redondo como os que costumavam usar nestas terras, era diferente.
                -Irá pagar o crime cometido, pois Deus está do meu lado.
                - Tenho os meus próprios deuses, eles estão aqui – e sacou a espada.
                O Jarl observando tudo disse:
                - Acalme-se Coendred, tomem suas posições, ao meu sinal. Cada um terá direito a dois escudos. Preparem-se... Lutem!
                Coendred havia acabado de prender o escudo em seu braço, sentindo sua espada se enraizar em sua mão, estava finalmente completo, como a criança que vai ao seio da mãe, como o homem que deita com uma mulher, ele estava absoluto. E atacou, seu primeiro golpe chocou-se com o escudo de Edgar, que se afastou e desferiu um contra-golpe, onde Coen esquivou com facilidade. Encararam-se e chocaram-se outra vez, desferindo novos golpes, se conhecendo, se medindo. Atacou novamente, dessa vez encaixando perfeitamente um corte no joelho esquerdo de Edgar, este recuou e mirou-o em um golpe pesado, partindo seu escudo e jogando-o no chão.
                Coen rolou e desferiu outro golpe abaixo de seu escudo, cortando sua outra perna, porém, nada profundo, a cota de malha protegia Edgar tão bem quanto seu escudo. Levantou-se e pegou o ultimo escudo que tinha direito. E trabalhou bem, controlando golpes bem aplicados com maestria. Edgar estava cansando-se, por baixo da conta de malha e do grande escudo, o homem estava sucumbindo. E Coen soube observar isso. Golpeou pesadamente o escudo de Edgar até esse não resistir e largá-lo, porém este partiu para um encostão, jogando Coen ao chão. Edgar Correu para fincar a espada, mas Coen conseguiu rolar suficientemente rápido, em poucos instantes já estava de pé.
                Largou o escudo no chão, queria algo de igual para igual, estocando e esquivando, sabia que se girasse ao redor dele, iria cansá-lo, a vitoria estava em suas mãos. Atacou, Edgar vacilou, sendo acertado no ombro. Coen manejava a espada, mirando e aplicando perfeitamente os golpes. Estava sentindo que iria vencer, então, Edgar partiu para cima dele, manejando um golpe arriscado, vinha com a espada acima da cabeça, empunhada pelas duas mãos, se ele errasse, morrerá na certa.
                Isso seria simples, firmou-se com o punho da espada, esse tipo de ataque é facilmente bloqueado, com abertura suficiente para um contra-golpe avassalador. Veio o choque das lâminas, quando pensou em fazer as mil coisas que vinham em sua mente, sentiu a espada vacilar em sua mão, sabia que possuía a força para resistir, mas seu punho falhou, e ele sabia, sim, sabia, que foram os Deuses que fizeram isso, havia chegado sua hora. Ele não pertencia a esse lugar, não mais, outro Deus estava imperando ali, não os dele. Seus Deuses estavam reivindicando sua alma.
- eu pertenço a eles...

Sequer viu a lâmina.